Nathália Mendes
Shockwave é o primeiro álbum em que Marshmello cria uma concepção do começo ao fim. Depois da série de edições Joytime I, II e III, Chris Comstock construiu uma obra para trabalhar sua identidade e contrariar quem superestima seu sucesso. O DJ de fato mostrou o entusiasmo frenético de sua essência, junto da habilidade em conversar com mais de um gênero eletrônico e estilo musical. Mas, seu disco indicado ao Grammy 2022 também está preso em um ciclo imutável de euforia – e isso é, na verdade, uma boa característica.
Mesmo que seja seu 4º disco de estúdio, Marshmello ainda está no processo de construir uma Arte mais do que musical. Seus singles são bem diferentes de seus álbuns – principalmente pelas parcerias vocais potentes -, nunca tendo montado uma ideia completa. Dentro da sua descoberta, há muitos erros e acertos, mas Shockwave inaugurou um processo: comprovar que o DJ americano é diferente da indústria que o circunda, pois facilmente se conecta com a nova geração, e compartilha com os demais seu êxtase para criar uma linguagem universal através da Música.
Em 2015, um cara com um capacete de marshmallow decidiu que o mundo não precisava saber quem ele era para que sua música fosse boa. Inspirado pela concepção de esconder o rosto vinda de grandes nomes como Deadmau5 e Daft Punk, o mais novo artista do momento estava certo, e não imaginava que o mistério levaria seu som para o topo tão depressa. Logo, ele se desprendeu de fazer remixes, como o bombado Where Are Ü Now, e partiu para a melhor música de sua carreira, aquela que desencadearia a fama global: Alone.
Os pequenos versos do single sobre a solidão de se perder e não se encontrar, acompanhados pelo future bass eufórico, são a cara de Marshmello. Com 2 bilhões de visualizações no YouTube, Alone marcou sua ascensão veloz, apenas 1 ano depois de ter entrado em cena. Mais importante ainda é que ela carrega o objetivo do DJ em, desde o início, compartilhar uma mensagem: transcender pessoas diferentes para as unir pela sensação de alegria. Isso faz parte de quem ele é musicalmente, e como artista.
Essa é, de fato, a parte mais preciosa e controversa que habita a tracklist de Shockwave. Enquanto FaiRyTaLE faz cada músculo do corpo saltar, inebriado com a batida progressiva e sem nenhum vocal, outras faixas escancarem um projeto comerciável se sobressaindo à essência. Confirmando a existência de uma marca muito bem estruturada para além da Música, Moe Shalizi, o manager de Marshmello, narrou a história do conceito “Mello” no mercado global no documentário Mais do Que Música para o Artist Spotlight Stories.
A empreitada do manager investe muito bem nos recursos visuais, tanto nos shows, quanto na experiência audiovisual das faixas de Shockwave – o Visual Album. Por outro lado, o conjunto tem se tornado apelativo demais. Agora, vídeos de culinária, comidas industrializadas e fantasias de Halloween fazem parte da agenda de Marshmello. Tudo isso porque 40% de sua audiência no YouTube é de menores de 13 anos de idade. Aparentemente, Shalizi o quer tocando para crianças e adolescentes fritarem com dancinhas do TikTok apenas porque esse público paga bem.
A marca Marshmello é de deixar lágrimas nos olhos, mas o menino que cantou a solidão em Alone parece se dissolver em meio ao mercado. Enquanto isso, sua base de fãs, a MelloGang, está cada vez mais embriagada pela linguagem musical do DJ, compartilhando a sensação de euforia explosiva que mora em House Party. E aí está a contradição: entre a vontade de Comstock pela boa música e a oportunidade de Shalizi estampar o capacete branco onde puder vender. Qual parte está mais empenhada em ganhar?
O esforço também desgastou a criação da música de fato, já que seu apetite em ser maleável e flutuar entre gêneros não é domina o álbum do Grammy. Predominantemente no future bass de grave profundo e nos sintetizadores afiados incríveis de Jiggle It, quando outras formas aparecem, como o synth de Back It Up com o DJ Sliink, o resultado é repetitivo. Isso porque o estilo de Marshmello é muito específico, sendo necessário maior atenção às batidas que aos vocais – que raramente estão presentes, e nem sempre dizem muita coisa.
Em Supernovacane, a quebra da progressão – o drop – é uma junção estranha de sons diferentes. Começando com uma intro que questiona seu sucesso, o primeiro minuto é enérgico, confortável no progressive que dá as caras às vezes, até ser interrompido pelo vocal de Kameron Alexander. Nesse ponto a música fica desconexa, compartilhando apenas a letra “Só me sinto calmo quando estou entorpecido/Supernovacane/Cane, novacane/Só me sinto calmo quando estou supernovacane” e o gosto por estar entorpecido.
De forma alguma as músicas são ruins, muito pelo contrário, metade do álbum é brilhante. No entanto, as letras básicas não mostram os pensamentos de Marshmello e os flertes com outros gêneros fazem falta. O DJ não se importa e não quer se encaixar em um só tipo de Música eletrônica, por isso Shockwave mostra a habilidade exímia seja no heavy bass ou na troca rápida de efeitos sintéticos de Back In Time. O problema é que nenhuma das faixas está tão fora da casinha quanto Silence, o feat antigo e glorioso com Khalid.
Já as poucas parcerias com grandes nomes em Shockwave foram tomadas por um som insosso e entediante. Em Bad Bitches, com Megan Thee Stallion e Nitti Gritti, a única parte boa está na integração do trap music. Essa característica de trazer poucos vocais para seus álbuns deixa espaço para o trabalho de retomar a essência dos Joytimes, o que realça como a tracklist toma um caminho muito diferente dos singles– e ainda bem. Os hits de Marshmello saíram desses feats incríveis, mas ele presenteia o mundo quando faz a própria boa música, longe do comerciável. Sua inércia em um som eufórico é, na verdade, viciante.
Semelhante aos 3 primeiros discos que tem uma repetição infinita da mesma batida, o disco do Grammy assegurou que suas melhores faixas tivessem características parecidas para a base. VIBR8 se parece com FaiRyTaLE, que lembra House Party, e todas são excelentes desmembramentos da própria Shockwave. E mesmo assim, cada uma delas conversa com um subgênero eletrônico diferente, como o heavy bass de House Party ou o future house sutil de VIBR8I. Tal habilidade é a confirmação da força identitária do DJ e de seu álbum, e explicam a indicação para Melhor Álbum Dance/Eletrônico de 2022.
O DJ americano é um símbolo, um exemplo de quem está subindo a escada da própria identidade até no Brasil – saindo do Lollapalooza em 2017 e voltando para o Palco Mundo do Rock in Rio em 2022. O futuro Joytime IV já deu as caras com o lançamento de BeFoRe U, um single com cara de trilha sonora e dos primeiros álbuns dele, que também será faixa lobby de Fortnite. A sua subida sempre esteve cheia dessas armadilhas do mercado, mas o próprio Shockwave garante que ele segue conseguindo encontrar a si próprio, como se os versos de Alone há 5 anos fossem um lembrete: “Nada me faz sentir em casa/Eu estou tão sozinho/Tentando encontrar meu caminho de volta para casa, para você”.
Ir para o Grammy não era algo esperado com esse álbum, e é um marco que tenha sido. Para ele, ter artistas que admira em seu álbum indicado ao maior prêmio da Música é importante. Bem longe dos vocais de Megan Thee Stallion, quem fez a diferença foi Carnage, TroyBoi e PEEKABOO. Por mais que seja revolucionário misturar todos os gêneros musicais que consegue, voltar para si próprio dentro da Eletrônica é prazeroso. Shockwave é justamente sobre isso, criar mais da energia eufórica que ele quer, de verdade, ouvir, e elucidar o que conforta Chris Comstock por baixo de todo o aparato da marca Marshmello.
O que o torna genial é a habilidade musical de sempre provocar alguma sensação no ouvinte. Não é sobre o pop dançante e animado, e sim uma emoção em que se é possível fechar os olhos e ser contagiado pela euforia. Essa embriaguez vicia, desprende da realidade e percorre o corpo. Tal sentimento está ali, disponível em uma música, acessível em meio ao mundo caótico. Compreensivelmente, a nova geração o consuma ardentemente, fascinada por não precisar explicar ao outro como é estar tomado de euforia. Em todos os momentos que Marshmello foi essencialmente ele, Shockwave transbordou Arte.