Ana Júlia Trevisan
O ano era 2019, a mágica turnê dos Tribalistas havia oficialmente chegado ao fim após o lançamento do DVD, e Marisa Monte anunciava em suas redes que iria se ausentar do mundo real para se concentrar em um novo álbum de inéditas, quase uma década depois de O Que Você Quer Saber de Verdade. O ano terminou e 2020 veio sorrateiramente trazendo a pandemia que colocou um ponto final em milhares de vidas pelo mundo. O Brasil, que já vivia em negação pelo troglodita que assumiu o cargo de chefe de Estado, viu Bolsonaro assumir sua pior faceta e se manter impune de um genocídio anunciado. Toda revolta e inquietação ganhou o agravante do isolamento, transformando as mentes em oficinas do diabo. Sobre o colo de Marisa caiu a tarefa de se refugiar – e oferecer refúgio – através da sua Arte.
Isolada a mais tempo que toda a humanidade, Marisa acoplou o trabalho que tinha feito até então e agarrou a missão de trazer calma e abrir caminhos de esperança nesse país que começa a respirar aliviado com a vacina. Assim nasce Portas, um álbum confortável dentro da própria discografia da cantora, refinado e com a complexidade amortecida pelo lirismo de composições solares e pela ação afirmativa do amor. A intenção de Marisa não é renegar todo o sofrimento de mais de um ano, mas sim trazer combustível para a luta, amenizar as dor das feridas causadas nesse cruel embate pela democracia. Aqui, o objetivo é trazer um pouco de positividade nessa onda de negacionismo: “sim pra democracia, sim pra ciência, sim pra cultura, sim pro meio ambiente, sim pro afeto, sim pra gentileza e sim pra arte”.
Marisa Monte concebe Portas tal qual quem acredita nas flores vencendo os canhões, e para isso, faz serviço completo de edificação, desenhando a planta, projetando a iluminação e concedendo alvará de construção. Dentro do edifício, somos colocados ao centro de um corredor branco repleto de portas, e todas elas dão para um lugar diferente. Seja no passado, no presente ou no futuro, Marisa brinca com o espaço-tempo e cabe a nós nos permitirmos viver a aventura que nos aguarda ao girar a maçaneta. Uma coisa é certa: após aberta, não há volta, assim como uma caixa de Pandora, Portas é uma catarse de sentimentos, mas nessa obra, apenas os bons tem vez.
O segredo para apreciar a obra é não ter medo de passear pelos caminhos que o disco oferece, deixar que as notas sirvam de ventilação e a voz da cantora de guia. Marisa Monte, que começou a apresentar seu talento como letrista apenas em seu segundo álbum, Mais (1996), mantém sua excelência com ainda mais segurança em suas composições, usando da garantia de ter acumulado um gigante (em todos os sentidos) repertório, ela retorna com as fórmulas instrumentais que emplacaram os álbuns anteriores e se apoia em novas narrativas para a criação de Portas. Marisa está convicta de onde quer chegar e conhece o caminho que deve ser percorrido até o destino. A compositora conhece as angústias de seu público fiel e oferece um disco de canções homeopáticas para acalentar as dores e os amores de cada ouvinte.
O que confere tudo é a faixa-título, que também serve como aperitivo das sensações que estão por vir. Portas nasce através da parceria de Dadi Carvalho, Arnaldo Antunes (o Tribalista saudosista do futuro) e Marisa. A música fala sobre diversas portas que podem se abrir, diversas oportunidades e a inexistência do certo e errado. Marisa desmistifica a escolha de uma porta só, justificando que todas servem para sair ou para entrar. Assim, além de nos convidar para a viagem, a cantora pega na mão do público, aliciando confiança para o frescor do novo trabalho.
Livre em seus passos, Marisa caminha pela porta do pretérito durante as cinco primeiras faixas do disco. Carregando uma visão saudável e esperançosa para o que está por vir, a artista apresenta as Portas, pede Calma e usa do passado como combustível para a guinada do futuro. Blindando a proposta está Déjà Vu, uma das melhores do álbum, que tem o arranjo de cordas coeso com melodia crescente que permanece forte durante os 53 minutos de Portas. Já o arranjo de Medo do Perigo traz uma brisa no ritmo da composição, anunciando que estamos prestes a ir para um cenário definitivo.
Nesse ponto, a obra da Marisa parece mesclada aos Tribalistas, trazendo no inédito composições veranis, que reafirmam o selo da trindade. Falando neles, Arnaldo Antunes assina três composições do disco e Carlinhos Brown cede espaço para que seu filho, Chico Brown, assine cinco faixas, sendo essa a maior parceria da tracklist de Portas.
Locomovendo-se entre portas, a cantora se libera da claustrofobia dos espaços fechados e percorre o campo a céu aberto em A Língua dos Animais, também parceria entre ela, Arnaldo e Dadi. Aproveitando a escapadinha, Marisa nos coloca sentados na areia e de frente para o mar, e é assim que o encanto de Praia Vermelha marca o retorno de Nando Reis desde Verde Anil Amarelo Cor de Rosa e Carvão, servindo para interligar canções e estimular o fluxo de ideias do álbum. Marisa Monte é a ascensorista do disco, transportando o ouvinte para cenários de natureza e conforto.
O presente e particípio se concretizam em Espaçonaves. A música escrita por Marcelo Camelo traz todo o classicismo do carioca, acentuando a escola de bossa nova construída por ele no início dos anos 2000. Imersa na produção do disco, Marisa Monte consegue driblar as barreiras da autenticidade de Camelo, deixando sua assinatura sem perder a melodia típica do ex-Hermano. O mesmo acontece em Sal, a faixa nostálgica que mantém o olhar atento e confiante ao mistério do futuro. A trinca se encerra em Você Não Liga, que tem a cantora e suas referências por completo, remetendo às composições soul dos primeiros discos, como a unânime Ainda Lembro.
Trabalhando em cima das melodias, o espaço para deixar a imaginação fluir ganha mais possibilidades. É através do marcante instrumental que somos teletransportados para um corredor cheio de cores, que ganha oportunidade absoluta em Quanto Tempo. O pedido de Calma que Marisa faz no início do disco é elaborado através de uma melodia aconchegante e com o mesmo primor do álbum O Que Você Quer Saber de Verdade. Aprimorando ainda mais a sonoridade de Portas, Fazendo Cena é tocada em três tempos, num compasso ternário que traz uma cadência própria para a faixa. Com sua intensa e inebriante letra, que nos permite sonhar com a futura realidade, ela é um destaque entre todas as músicas do disco.
Longe de toda estética de viagem temporal, temos Elegante Amanhecer. A ode de amor à Portela, maior campeã do Carnaval carioca, é total mérito de seus compositores: Marisa e Pretinho da Serrinha. É como se, casualmente, os musicistas abrissem a porta da saudade, afinal, “quem nunca se perdeu em tantos carnavais”. A faixa faz referência ao carnaval de 2020, ano em que a escola foi a última a entrar na Avenida, encerrando o desfile quando o sol já estava alvorecendo. A letra explicita as emoções que Pretinho sentiu ao assistir o belíssimo desfilar do grêmio recreativo, e a parceria com a portelense, apesar de correr na contramão de tudo que já havia sido apresentado em Portas, se torna uma bela e gentil homenagem à águia altaneira. “Salve o samba, salve ela!”
Portas é um álbum de visual forte. A Música nos permite expandir os sentidos para além da audição e a produção usa isso a seu favor, construindo um império de figuras potentes. A serenidade do álbum vem da força e do equilíbrio dos arranjos de cordas. Apesar de estar disponível apenas para consumo digital, Portas é feito para ser apreciado de maneira física, e Vento Sardo comprova isso. A faixa em dueto com Jorge Drexler foi lançada quatro meses após a chegada do álbum nas plataformas e ganhou o décimo quarto espaço da setlist, revelando a preocupação da artista com a ordem de escuta de suas músicas, cronologia típica de trabalhos físicos. A Marisa Monte de 89 tinha vários reparos para fazer e se consagrar, já a de 2021 não precisa provar nada pra ninguém, se consagrando mestre do seu ofício. Ouvir e se permitir sentir esse novo álbum é de uma sensibilidade extrema que faz simetria com a preocupação de alta patente da cantora.
Marisa oferece esperança sem ser subversiva, acreditando que quem conhece a estrada dela conhece também seus valores e sua resistência. Em seus meses isolada, a cantora sentiu falta de poesia e antagonismo amoroso e tomou a decisão de ofertar o que estava faltando. A ideia é, dentro das inúmeras carências brasileiras, trazer conforto emocional para as dores e perdas, complementar o momento crítico de luta com afago musical. Se valeu a pena esperar 10 anos? Essa pergunta nem deveria estar em pauta. Artistas não têm termos de compromisso, nem obrigação de trabalhar em produções desenfreadas para se tornarem números no Spotify. A beleza de Portas está em sua capacidade de florescer no tempo que a cantora julgou certo e ideal para o lançamento das inéditas.
A porta da vacina está aberta e 2022 está logo aí com a esperançosa promessa de mudança e com a Turnê de Portas, já de início marcado para janeiro. Marisa cumpriu seu dever de maneira única, trazendo a leveza e o novo sem se desassociar dos trabalhos anteriores que a fizeram uma das maiores referências da Música Popular Brasileira. Colorido, positivo, harmônico, etéreo e potente, o inédito de Marisa Monte gritou a gentileza da artista mais uma vez e com conforto no passado plantou o futuro.