Vitor Evangelista
52 anos se passaram desde que Carlos Marighella foi alvejado por tiros em uma emboscada, dentro de um carro na Alameda Casa Branca, em São Paulo. O momento, marcado para sempre nos livros de História como mais um dos massacres políticos e sociais da Ditadura Militar, agora é transposto às telas da ficção, na dolorosa constatação de que o Brasil de 1969 dialoga com eloquência e pesar com o país de 2021. Marighella, cinebiografia do Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, aposta no Cinema de ação e revolta para, em meio ao banho de sangue e lágrimas, exprimir esperança.
A árdua tarefa de transformar a vida e a morte de Carlos Marighella em Arte não é recente. Na verdade, a ideia surgiu em 2013, como revelou o diretor Wagner Moura no evento de pré-estreia que aconteceu em São Paulo, no Cine Marquise da Avenida Paulista, no fim de outubro. Quando entrou em contato com o livro de Mário Magalhães, a decisão de ter alguém de esquerda e baiano no comando da produção pareceu uma combinação mágica para o ator, que sempre teve vontade de assumir o posto da direção, mas achou que o faria com uma obra menor, focada em poucos personagens e em uma história mais simples.
E simples não é nem de longe sinônimo de Marighella. A publicação de Magalhães se estende por centenas e centenas de páginas, mas o recorte de Moura foi astuto o bastante para entender o recado. Ele queria, a princípio, devolver ao imaginário popular essa figura que foi amaldiçoada, e, fascinado por histórias de revolta, encontrou nesse filme o veículo ideal para unir o útil ao agradável. É certo que sua escolha inicial para viver o protagonista acabou não indo para frente e, após a saída de Mano Brown, o poeta lutador que não fazia concessões, chegou Seu Jorge.
Também presente na coletiva, o artista não poupou elogios ao trabalho do diretor e foi muito sincero na hora de colocar em palavras o que atuar em Marighella significava para sua própria jornada de reconexão com o Brasil, país pelo qual é apaixonado e se encontrava distante. Esse fogo de ardência é sentido em cada uma de suas preciosas e carregadas cenas. Quando banha seu filho Carlinhos no mar, numa construção que brinca com o batismo de Moonlight, Seu Jorge já anuncia que as próximas duas horas e quarenta serão constituídas de fortes emoções.
A história se divide em duas. Mesclando momentos em 1964, após a instauração do golpe apoiado pelos EUA, e em 1968, logo depois de Marighella cofundar a Ação Libertadora Nacional (ALN). Dessa forma, a direção de Moura, em conjunto ao roteiro escrito por ele e Felipe Braga, se priva de perpassar cada momento da criação e amadurecimento do protagonista, dando fôlego e tempo de tela para os dilemas de um Marighella envelhecendo, além de manejar com destreza o desenvolvimento de alguns coadjuvantes. Em 64, Seu Jorge é eufórico e a preocupação de revolta floresce por seus expressivos olhos. A maior qualidade dessa atuação, entretanto, se reserva aos momentos de calmaria, quando o ator abaixa a guarda.
Para viver um homem negro de pele clara, a escalação de Seu Jorge causou um rebuliço na mídia, visto que o ator tem a pele retinta. Na exibição para a imprensa, Wagner Moura detalhou o processo de casting e que o objetivo era “empretecer” Marighella, neto de escravos sudaneses e filho de uma mãe nascida no ano da abolição. A questão racial era intrínseca à vivência e a luta do baiano, e enquanto a produção enfatiza esse ponto de tensão, ela acaba também diluindo outra de suas características de formação: o comunismo. Por mais que o roteiro deixe de escanteio os ideais do protagonista, quem conhece a História tem noção de sua posição marxista-leninista, e dos objetivos do combate à Ditadura Militar. Além da busca por igualdade e justiça, a ALN enxergava a necessidade da luta armada como caminho para a instalação de um governo popular revolucionário no Brasil.
No contraste, Bruno Gagliasso encarna a escória do mundo na figura de Lúcio, policial que vai à caça dos militantes e guerrilheiros. O personagem, embora tenha outro nome, é a representação de Sérgio Fleury, delegado responsável por arquitetar a morte de Marighella. Quando perguntado na coletiva de que maneira deu nuances ao mal absoluto, o global revelou a dificuldade de se preparar para o papel. Pai de crianças negras, ele interpreta um racista e fascista desmedido, raivoso e violento. Gagliasso não opta pelo óbvio quando vocifera cada uma das ofensas cuspidas em tela, ele abraça o lado político da empreitada, contornando sua atuação ao redor da denúncia e do imediatismo do Brasil de 2021.
A censura que atingiu o filme não foi acaso do destino. Como efeito cascata, Wagner Moura insistiu em catalogar esse bolsão de caos político entre os anos 13 e 21, desde as Manifestações de Junho, o Golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro dois anos mais tarde, até chegar ao hoje, pandêmico, enclausurado, natimorto. Quando subiu ao poder, o presidente não demorou a cortar verbas da Cultura, e a Ancine, agência responsável pela retomada e pela frutífera colheita do Cinema nacional pós-anos 90, acabou inerte, dormente, sangrando. Marighella estreou em 2019, no Festival de Berlim, mas só pôde prestigiar uma exibição na terra que o concebeu dois anos depois.
A projeção no Cine Marquise foi a segunda coletiva do longa, depois daquela inaugural na Alemanha. A produtora Andrea Barata Ribeiro foi enfática quando detalhou os percalços enfrentados pelo filme, desde pedidos negados pela Ancine (em um momento onde Bolsonaro enfatizava que filtraria o que achasse necessário) até a dificuldade de entrar em cartaz. Ano passado, a ideia era um lançamento no Dia da Consciência Negra, que acabou não ocorrendo. Esse ano, eles conseguiram chegar em Novembro, mês simbólico para tudo que Marighella significa.
Além de ser uma ficção que coloca lentes dramáticas na jornada dos guerrilheiros, Marighella precisava funcionar como filme. Por mais que nem todos os acontecimentos tenham de fato acontecido, Wagner Moura enfatiza que eles são plausíveis para aqueles personagens. Maria Marighella, atriz e neta de Carlos, é quem simboliza na carne esse elo forte com a realidade. Ela interpreta sua própria avó Elza, a mãe de seu pai, e faz da pequena presença na rodagem um dos corações pulsantes da obra.
Sua contraparte, e espécie de irmã de alma, é Clara, personagem de Adriana Esteves, esposa de Marighella. A atriz, que assistiu ao longa pela primeira vez apenas dois dias antes da exibição na Avenida Paulista, tinha emoção no olhar quando ressaltou o poder do amor de um filme como esse, o poder de empatia e de esperança manufaturado pela visão do diretor. O exemplo mais claro fica perto da conclusão, quando depois de morto, Marighella tem sua foto exibida em uma redação de jornal.
Lá, Carlinhos e sua mãe se chocam com o terror da realidade. Na hora em que Moura parece que cortará para o preto e dará por encerrada a experiência de quase 3 horas, o diretor, então aliado à montagem de Lucas Gonzaga, nos transporta para a residência de Clara. Esteves, aflita e absorta, quase que sentindo o momento sem ao menos ter a confirmação do assassinato, abraça o espectador. Ela sofre, chora, se conecta à personagem de Maria Marighella sem a necessidade de compartilhar o espaço físico. A força dessa decisão de Moura é sentida em segundo plano, correndo pelas beiradas.
O contraste de gerações entre Marighella e os companheiros de luta pode parecer desencaixado à princípio, mas é uma deliberação proposital. Com a Arte acostumada a representar seus militantes jovens demais, o filme coloca esse homem de cinquenta anos para liderar uma galera que mal chegou aos trinta. O Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano (1969), como bem relembra Maria Marighella em sua fala sobre a importância da juventude, dá “funções” a cada um dos grupos, dos artistas, aos estudantes e aos cidadãos “comuns”.
Colocar em cena Seu Jorge ao lado de nomes como Humberto Carrão, Bella Camero e Jorge Paz serve para mostrar que essas pessoas tinham vidas, sonhos felizes, trabalhos ordinários e muito a perder. Carrão, escondido por uma barba espessa e uma camada de suor que o camufla em cena, vive pela euforia do grito e da rebelião. Camero tem a sensatez aliada ao fogo da inquietação, e Paz, o coadjuvante mais importante do longa, cultiva o medo do amanhã pela família e a destreza do hoje pela verdade e pela justiça. Quando o filme poda cada uma de suas raízes, o sentimento de amargor é sinônimo de melancolia, mas nunca de derrota.
A experiência coletiva que Marighella aflora mora no debate, na troca de ideias e na propagação do senso de luta. Não cabe apontar o que o filme “adaptou corretamente” a história ou julgar as liberdades tomadas pela Sétima Arte. Tendo como objetivo primário funcionar dentro do gênero da ficção, Marighella não pinta seu protagonista como herói demais, ou vilão de menos. Seu Jorge dá vida a um homem repleto de falhas e sonhos, que encontrava na agitação e na manifestação a única maneira de pregar seus ideais.
O Cinema no Brasil, como em qualquer outro lugar do mundo, vem munido de ideologias e comentários sociais. Mas, se quem assiste acredita que a luta pelos direitos sociais, a igualdade, o antifascismo e o antirracismo são “manobras de esquerda” ou “posições radicais de doutrinação”, o problema não está dentro das quase três horas de realização cinematográfica.
Anos depois de dar vida a um Capitão Nascimento que se tornou bandeira de uma direita autoritária e violenta e a um Pablo Escobar que caia facilmente na visão norte-americana de gato e rato, hoje Wagner Moura realiza um Cinema de ação com significado e mensagem mais delimitados. Ele não faria um filme deste calibre e com essa pegada se não fosse orgânico ao material base, como ressaltou na coletiva, definindo a obra como um híbrido de gêneros.
Extrapolando o meio-termo entre o surreal e o mundano, o filme ensurdece pelo desenho de som altíssimo e que valoriza cada caixinha da sala de cinema. Mas o absurdo tempo do corte final enfraquece uma obra que poderia chegar ao mesmo lugar (ou até a um patamar elevado) com muitos minutos a menos. Como diretor de primeira viagem, Wagner Moura faz o primordial aqui: coloca o filme na boca do povo, se estica para além do telão branco e se senta ao lado do espectador, plantando dúvidas, opiniões e fomentando o que o Cinema sempre se prestou a fazer, mudar perspectivas e criar sensações.
Marighella é barulhento, essencialmente violento e tem em sua formação uma mensagem de motim que, sem problemas ou empecilhos, conversa com o Brasil governado por Bolsonaro mas gerido pelo caos. Vai incomodar, vai ser incomodado e sinaliza uma marca para o Cinema “popular”, já carregada por produções sem o mesmo alcance ou interesse da audiência.
Para efeito de comparação, no mesmo mês em que Marighella preencheu suas cerca de trezentas salas, Cabeça de Nêgo, filme que também lida com questões raciais em um Brasil ebulindo, mal chegou a compor notas de rodapé. A cena pós-créditos, nascida de um improviso do elenco, é o clímax da paixão dos realizadores. Tomando de solavanco o hino nacional, há muito nos surrupiado, os atores colocam para fora o sentimento de nacionalismo apagado quando o assunto é comunismo, o bicho-papão do século XXI. Os guerrilheiros amavam o Brasil, Carlos Marighella amava o Brasil, Wagner Moura ama o Brasil.