Eduardo Rota Hilário
Não há ser humano no mundo capaz de trilhar um caminho feito todo de luz. Justamente por sermos humanos, a complexidade nos acompanha dia após dia, guiando-nos sempre diante das surpresas e mistérios da vida. Partindo dessa lógica, nossa existência se faz um eterno e heterogêneo jogo de luzes, penumbras e sombras. Nossa Arte, por sua vez, apenas reflete essa humanidade multifacetada, criando possibilidades e universos únicos, por vezes até mais atraentes do que aquilo que, por convenção, resolvemos chamar de ‘realidade’. De todas essas questões, especificamente da última, Maria Bethânia entende bem.
Gravado em 2020, o novo álbum da Abelha Rainha, Noturno, só foi disponibilizado pela gravadora Biscoito Fino em julho de 2021. Mas isso não quer dizer que, até o dia do aguardado lançamento, os fãs da intérprete brasileira desconheciam totalmente as 12 faixas do disco. Afinal, uma parte desse repertório foi apresentada no show Claros Breus, de 2019, realizado na boate carioca Manouche. E o que se tornou uma espécie de consenso para a crítica nacional, quando finalmente nasceu a nova obra de Bethânia, foi exatamente a experimentação – em parte, herdada do espetáculo no Rio – que Noturno constrói com os fulgores e as trevas dos últimos anos.
Partindo de uma espécie de paradoxo, a porta de entrada para o mais recente universo de Bethânia é a angústia perfeita. Ao escutarmos Bar da Noite (Bidu Reis/Haroldo Barbosa), faixa que abre o disco, temos a certeza de que resgatar um samba-canção gravado mais de uma vez por uma figura da dimensão de Nora Ney, nome brasileiro centenário e de canto extasiante, só poderia ser a escolha de uma intérprete sublime, igualmente consolidada e incomparável, que tem a sensibilidade como guia de todos os seus passos artísticos. Acompanhada pelo piano de Zé Manoel, a voz de Maria Bethânia assume, aqui, um ar tão dramático, que consegue nos transportar diretamente para o “Bar que é o refúgio barato/Dos fracassados no amor”.
Em sequência antitética, O Sopro do Fole estabelece a primeira contraposição festiva do álbum. Arquitetando uma jornada em família, essa composição de Zeca Veloso, filho de Caetano, dá vida a um baião que surpreendeu até mesmo a Abelha Rainha. Em entrevista ao jornal O Globo, Bethânia afirmou que “É estranho o Zeca tão carioca, tão urbano, ter feito uma canção quase que regional. É uma sensibilidade aguçada e talento de sobra. Foi uma das maiores emoções desse disco”. De fato, uma música tão singela sinaliza cristalinamente a poesia que paira sobre a família Veloso.
De qualquer modo, lirismo é o que não falta em Noturno. Certos regionalismos, por sinal, seguem o mesmo caminho. Juntar esses dois elementos, no fim, pode ser uma decisão perfeita. Ótimo exemplo disso é Lapa Santa, que encanta os ouvintes desde sua abertura – quase – épica. Lançada como segundo single do álbum, a canção de Paulo Dafilin e Roque Ferreira alude ao município de Bom Jesus da Lapa (BA), que é banhado pelo rio São Francisco, e também às mais variadas e ricas devoções do povo nordestino. Logo em seguida, o samba De Onde Eu Vim, também de Paulo Dafilin, se afasta do tom dramático e da melancolia anteriores, mantendo, porém, uma inevitável saudade da Bahia, terra natal de Bethânia – e lugar tão distante durante a pandemia.
Em relação às faixas nem sempre recordadas, Vidalita (Maria Teresa Martin Cadierno) com certeza merece destaque, já que, ao lado de Mi Unicornio Azul, gravada por Ney Matogrosso para o álbum Nu Com a Minha Música, essa é uma das mais belas canções em espanhol lançadas por intérpretes brasileiros em 2021. Curioso é que, além de ser um recurso criativo, a junção de voz e violão em Vidalita denuncia uma preocupação recorrente no pandêmico e mórbido ano de 2020: “Meu disco tem muito voz e violão, voz e piano, porque era uma maneira de realizar. Foi a solução que encontramos.”, revelou Bethânia ao jornal baiano Correio.
Também lembrada com menor frequência, Música Música entoa versos otimistas e enxerga uma luz no fim do túnel: “Nascem novamente no meu peito/As ilusões” e “a vida/De novo me convida/Ao som divino de um violino/Chama pra cantar/A bem-aventurada música/Da esperança”, narra a letra de Roque Ferreira. Tendo em vista que cada faixa carrega uma dedicatória própria, não é à toa que essa, em específico, foi dedicada aos sobreviventes. Já Cria da Comunidade (Xande de Pilares/Serginho Meriti), canção razoavelmente popular, é a escolha mais inusitada de todo o álbum. Aventurando-se por novos caminhos, e dividindo os vocais com Xande de Pilares, Maria Bethânia nos surpreende nesta bela colaboração, já que obtém sucesso até mesmo fora das sonoridades às quais está mais habituada.
Mas o maior destaque de Noturno é, com certeza, o bolero Prudência. Da autoria de Tim Bernardes, artista que se fixa cada vez mais na história da Música brasileira, essa canção já é um dos grandes sucessos da filha de Dona Canô, podendo, mais cedo ou mais tarde, estar ao lado de clássicos como Onde Estará O Meu Amor, Olhos Nos Olhos e Não Dá Mais Pra Segurar (Explode Coração). Sobre ela, na já mencionada entrevista ao jornal O Globo, Bethânia contou que “Caetano ouviu e achou que fosse uma dessas pérolas antigas do cancioneiro nacional que eu escolho para os meus discos. Mas era do Tim!”. De certa forma, existe a forte sensação de que Prudência nasceu consagrada – e os números no Spotify parecem concordar com essa ideia.
Por falar nas composições mais ouvidas, A Flor Encarnada, de Adriana Calcanhotto, é outro momento inigualável de Noturno. Igualmente emoldurado pelo recurso voz e piano – tocado pelo mesmo Zé Manoel, de Bar da Noite -, o lead single do álbum mergulha qualquer ambiente em uma melancolia densa, dramática, transformando os mínimos detalhes em um verdadeiro “sertão de lágrimas”. Poética ao extremo, essa flor de beleza torta se mostra demasiadamente trágica – e, talvez, seja exatamente o exagero de seus versos, combinado com uma profundidade instrumental, que a transforme em uma das canções mais bonitas de toda a obra.
Assim como Calcanhotto, alguns dos compositores recorrentes na discografia de Maria Bethânia não poderiam ficar de fora de Noturno. É essa a realidade de Paulo Dafilin, Roque Ferreira e, com toda certeza, Chico César. Este último, vale ressaltar, banha-se na esperança cintilante de Luminosidade, que recebe a dedicatória “para pedir misericórdia”, enquanto Adriana aparece em dose dupla, protagonizando dois momentos cruciais do álbum. No segundo deles, Dois de Junho, o Caso Miguel é revivido com muita teatralidade, violência, revolta e dor, denunciando à posteridade a morte evitável de um menino negro, de apenas cinco anos, neste “país negro e racista”.
Carregando uma das dedicatórias mais significativas de Noturno, “para os indiferentes”, Dois de Junho manifesta uma carga política incalculável, porque imortaliza um episódio que não pode se perder em meio à indiferença. Assim como em Carcará, Balada de Gisberta e Cálice, assistimos, aqui, àquela voz que não se cala, verdadeiro dote de uma artista devidamente atenta aos momentos históricos que vivencia. Não satisfeita com a visível qualidade da letra, Maria Bethânia ainda se insere, durante toda a canção, em uma atmosfera instrumental tensa, que guia as aflições metafóricas e literais da crônica musical de Calcanhotto.
A esperança, contudo, não morrerá tão cedo. Para encerrar magistralmente o álbum, a Abelha Rainha declama alguns fragmentos do revigorante poema Uma Pequenina Luz, do poeta português Jorge de Sena. Em constante comunhão com a Literatura, Bethânia nos emociona ao apontar que, embora incerta e vacilante, uma pequenina luz brilha “no meio de nós”, próxima, exata, firme… Eterna! Como um milagre, então, o calor dessa chama nos toca. Afaga o coração. Acaricia a alma. Traz lágrimas ao rosto dos ouvintes mais sensíveis e suspiros à postura daqueles mais abalados. “Brilha./Não na distância. Aqui/no meio de nós./Brilha”.
É interessante lembrar que, em Claros Breus, quem encerrava o espetáculo era justamente a canção Bar da Noite – e, com ela, toda a escuridão dos cenários noturnos. Em um processo inverso, o novo disco de Bethânia traz essa música para sua abertura e coloca o desfecho preciso sob responsabilidade de um poema extremamente luminoso. Afastando-se de devaneios ingênuos, Noturno junta um excelente repertório escolhido pela intérprete baiana com a direção musical e os arranjos do maestro Letieres Leite (In Memorian), erguendo, a partir desse – e de outros – encontros, uma esperança realista de um futuro melhor.
Certo é que Noturno também se consolida como um dos grandes discos de 2021 – e de toda a carreira de Bethânia. Em 2019, quando lançou Mangueira – a Menina dos Meus Olhos, a Abelha Rainha entregou aos fãs uma obra de qualidade, elaborada com muito carinho e zelo, mas que funcionava mais como tributo do que um álbum expressivo e denso. Agora, o que se contempla é uma experiência nova, até mesmo arriscada, mas que reitera o faro sensível de Maria Bethânia para suas interpretações. Uma mistura de luz, penumbra e sombra feita para quem sabe desbravar com intensidade as estradas da vida.