Giovanne Ramos
Estamos no país que mais mata transexuais e travestis no mundo. De acordo com um relatório anual publicado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA), o país teve um total de 175 pessoas transexuais assassinadas em 2020. Esse número equivale a uma morte a cada dois dias, de vítimas que eram mulheres trans/travestis, em sua maioria negras, pobres e prostitutas. E não, Manhãs de Setembro não retrata a realidade de uma estatística, pelo contrário, a série nos permite vivenciar um drama que foge dessas fatalidades, mas sem esconder a dura realidade do que é pertencer a esse recorte num país como o Brasil.
Dirigido por Luis Pinheiro e Dainara Toffoli, a série brasileira idealizada por Miguel de Almeida chegou ao catálogo do Amazon Prime Video no dia 25 de junho, chamando atenção pela protagonista e sua premissa. Liniker conquistou o país com sua voz e suas músicas poéticas, além de sua trajetória única. Mas protagonizando algo tão grande? É uma novidade. Talvez a sua primeira vez no ramo mainstream. Há um certo mito de que nem todos os cantores entregam uma boa atuação – Fiuk que o diga -, mas esse não foi o caso da artista. Dando vida à Cassandra, Liniker expressa uma realidade que é bem conhecida por muitos e não tanto por outros.
Com uma temporada única dividida em cinco episódios, somos apresentados à história de Cassandra, transexual, negra, entregadora de aplicativo, aspirante à cantora e, de certa maneira, ranzinza. Logo no início do primeiro capítulo, É Só Por Hoje, acompanhamos a sua trajetória da aquisição de uma kitnet na cidade de São Paulo. Não é nem preciso dizer que as condições são semelhantes a de um cortiço. Quem já teve a oportunidade de fazer uma passagem pela cidade, consegue notar a semelhança da paleta soturna e fria da obra com o local onde é ambientada.
Para um sortudo que não foi pego por spoilers e caiu de paraquedas na série, a sensação é de que a trama central é a relação de Cassandra com o seu par romântico Ivaldo (interpretado por Thomas Aquino) e os perrengues da vida afetiva de uma mulher transicionada. Mas a história vai além desse tipo de afetividade. O seu núcleo é a relação da nossa protagonista carrancuda com Leide (Karine Teles), uma paquera da vida antes da transição, e Gersinho.
Gersinho, interpretado pelo estreante Gustavo Coelho, é uma criança de 12 anos que nunca conheceu o pai. Ao mesmo tempo, mora em um carro carcomido com sua mãe Leide, vendedora ambulante e sem-teto, que, impulsionada pelo desejo do filho, decide ir atrás de Clóvis, o pai do garoto. Esse é o plot, Clóvis agora é Cassandra, que se vê desesperada ao descobrir que a relação antiga com Leide resultou em um filho que desconhecia até então. Neste momento, é como se pudéssemos enxergar uma placa de negação na testa da personagem. Ela passa por um bom tempo rejeitando o garoto, que numa espécie de pureza, enxerga na pessoa feminina a imagem de seu pai.
O restante da série é de difícil descrição. É incrível o tanto de nuances que permeiam Manhãs de Setembro em cinco episódios de 30 minutos cada. Mas alguns fatores são dignos de destaque, começando pela alusão à cantora Vanusa. A homenagem vem desde o título da série, até a importância dada para a artista, uma explícita inspiração de Cassandra. A narradora “fada madrinha”, uma voz oculta que aconselha – nem sempre no melhor sentido da coisa – a protagonista em diversos momentos, é um baita tributo à figura irreverente da musa brasileira que nos deixou em 2020. E as interpretações! Parte da discografia de Vanusa ganham uma roupagem incrível na voz de Liniker e costura diversos momentos em que é possível associar a riqueza lírica com a situação em cena.
A maternidade é outro norte precioso da obra. Temos Leide, uma mulher que ama o seu filho mas não sabe como ser uma boa mãe e passa toda a sua história entre erros tentando ser a figura materna digna que Gersinho merece. Cassandra, por sua vez, custa a aceitar o pequeno, ainda mais pela criança chamá-la de pai, inocentemente sem conseguir discernir a imagem feminina da convenção de que, se Leide é sua mãe, Cassandra só pode ser o pai. Esse embate da criança carente por aceitação e da protagonista que nega aceitá-la torna tudo menos clichê e previsível, e de certa forma até prazeroso. É satisfatório notar os momentos que o pequeno gênio consegue penetrar a casca dura de Cass. Impossível ninguém se emocionar no momento “Você é muito bonita, pai”.
Para fechar o ciclo de abordagem familiar, somos também presenteados com algumas estruturas únicas. Manhãs de Setembro nos apresenta ao casal Aristides (Gero Camilo) e Décio (Paulo Miklos), amigos de Cassandra e que protagonizam momentos memoráveis com Gersinho; à Grazy, colega de escola da estrela mirim, que, de maneira subentendida, é filha de uma garota de programa que confia na esperteza da filha; ao núcleo familiar de Ivaldo, onde sua filha bem resolvida pretende se assumir, chocando o pai com tanta confiança; e por último e não menos importante, também existe a rede afetiva de Cassandra, composta por outras mulheres negras transexuais – incluindo Pedrita, interpretada por Linn da Quebrada.
Manhãs de Setembro é uma daquelas séries que não possui uma única mensagem, mas várias. E se você pisca o olho, acaba perdendo alguma delas. É sobre as possibilidades de família, precarização do trabalho e de moradias, pessoas em situação de rua, estratificação social, afetividade e acima de tudo, realidade. São tantos pontos, que alguns com certeza podem ter sido deixados de fora dessa crítica, e a visão de quem assiste pode ser distinta. Mas é isso que caracteriza um trabalho tão subjetivo. O texto foi aberto com a realidade trágica de muitas trans/travestis, mas a produção é preenchida com instantes de risos, tristezas, alegrias e prazeres, mostrando que essa não é, e nem deve ser o único aspecto a ser notado, muito menos, a única possibilidade.