Nathalia Tetzner
Pecadora e santa. Prostituta e apóstola dos apóstolos. São inumeráveis os adjetivos antagonistas que constroem a imagem sagrada de Maria Madalena, a principal devota de Jesus Cristo. Atordoado pelo devaneio sobre os seus últimos dias de vida, o diretor francês Damien Manivel coloca em perspectiva a personalidade mais misteriosa e discutível do Novo Testamento no filme Magdala, participante da seção Perspectiva Internacional na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e, previamente, exibido na seção L’ACID do Festival de Cannes 2022.
Com a monotonia e sensibilidade características do cinema lento, Manivel deixa que o tempo leve o que for preciso para responder a seguinte pergunta: “afinal, após distribuir tanto amor, quem cuidará de Maria Madalena?”. A narrativa parte da lenda que reza o exílio da protagonista como uma consequência da crucificação do seu amado. Ao pintar o retrato da solidão na floresta, o cineasta consegue captar a genuinidade da natureza em cenas que não poderiam ser roteirizadas dado a imprevisibilidade. Assim, ele mantém a tinta fresca e explana a diferença entre as produções independentes e os grandes estúdios que abusam dos efeitos especiais.
A escolha da atriz Elsa Wolliaston foi certeira. Ela, nômade do mundo artístico, já transitou pelo Cinema, Teatro, Dança e Ópera, e por isso, carrega o enorme peso de levar o público ao objetivo final da jornada de Magdala sem demonstrar martírio. Quando visualiza a sua juventude, a jovem Olga Mouak não é menos hipnotizante. O único sofrimento em questão está estritamente concentrado na feição da personagem que a dupla interpreta. Importante notar que ambas são mulheres negras na pele de Maria Madalena, fator que felizmente destoa da eurocentralização contínua em obras como esta.
O tato é o sentido que guia a conexão da discípula de Jesus com a natureza, aqui personificada pela figura de linguagem do roteiro de Damien Manivel e Julien Dieudonné. As árvores sufocantes, as estações impetuosas, os frutos e a água dos caules saciantes fazem parte do cenário selvagem que é, simultaneamente, a lamentação de Maria e o único lugar onde ela se sente devidamente acolhida. Para alcançar esse feito cinematográfico, a fotografia de Mathieu Gaudet navega entre o azul da noite fria que desperta a angústia e o verde do dia quente que aflora a esperança.
Intrinsecamente ligado à imagem, o som das cores ganham volume com o trabalho de Jérôme Petit, Agathe Poche e Simon Apostolou. No longa-metragem, o balanço das folhas ao vento, a chuva e o ato da alimentação recebem um barulho tão desconfortante como necessário para se entender que, no pensamento de Maria Madalena, chorar a natureza é o mesmo que chorar a Jesus Cristo. Magdala pode ser lido como o documentário de uma peregrinação, ao longo de grande parte dos 78 minutos que o compõem, não há palavras e, quando há, são direcionadas para a manifestação da supremacia do amor.
“Entrego o meu coração a Ti”. O incondicional é objeto de adoração da montagem do diretor, Manivel traz para a tela a mistura alucinante entre presente e passado. São as memórias da união carnal e espiritual entre mulher e homem, que proporcionam o contraste da transição do pacifico para o tortuoso na obra. Ainda que a produção seja uma ficção de nacionalidade francesa, a língua aramaica foi mantida pela fidelidade ao período histórico. Esse cuidado com a apresentação não é novidade: outros filmes de Damien Manivel, A Noite em que Nadei (2017, 41ª Mostra) e Isadora’s Children (2019), são aclamados pela crítica.
Pele negra, cabelos grisalhos e olhos esbranquiçados de uma visão que contemplou o início e o fim de tudo, a Magdala de Damien Manivel é uma força da natureza em uma das mais belas representações de sua passagem pela Terra na Arte. São os últimos minutos que fazem questionar se a protagonista estava acompanhada somente de si mesma na floresta. Do mesmo modo que Jesus, ela também tem uma vigília, uma menina, um anjo e, quando a vela de sua chama finalmente se apaga, o espectador sabe que ela correu acima das montanhas, o único lugar onde o seu amado pode lhe dar amor.
Ah, os últimos dias de Maria Madalena… foram compridos, sofridos, monótonos e sensíveis. Porém, mesmo que a narrativa demonstre cansaço e pareça arrastada em alguns momentos, a contemplação se sobressai pelo poder de fazer o espectador sentir uma obra do divino. Ela, quem disseminou o amor e quase foi apedrejada, finalmente é presenteada com um retrato delicado de sua trajetória. Quando os créditos sobem depois da neblina, da dor no peito e do coração na mão, Magdala demonstra que a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo segue sagrada em sua 46ª edição.