Caroline Campos e Vitor Evangelista
Luana Muniz viveu uma vida coletiva. Isso não é apenas dito, mas também mostrado pelo filme que carrega, além de seu nome, uma alcunha muito singular: Filha da Lua. Travesti, ativista, atriz, prostituta e Rainha da Lapa. Bocuda, intensa, carismática e protetora. Sob as lentes de Rian Córdova e Leonardo Menezes, o mundo conhece e se despede daquela que já deveria estar marcada na memória de um país ensinado a odiar minorias.
No mês em que é celebrado o Dia do Documentário Brasileiro, Luana Muniz – Filha da Lua busca o sóbrio no lugar do quimérico. Unidos na direção, os cineastas revisitam momentos da vida da artista, partindo do hoje para retomar as cicatrizes que formaram a armadura dessa guardiã da comunidade LGBTQIA+. Mas se engana quem pensa que os 78 minutos de rodagem pintam Luana como uma santa padroeira.
Longe do lugar comum em que aterrissam os filmes póstumos, o longa abraça todas as facetas da impressionante mulher, que ficou famosa uma década atrás quando desceu a porrada em um cliente e bradou a frase que ganhou as manchetes da Globo: “travesti não é bagunça!”. O texto de Córdova mantém a objetividade acima do floreio ao escrever a figura de Luana em um trabalho quase jornalístico, buscando fontes e guiando-as em entrevistas precisas e complementares entre si.
O material começou a ser angariado quando a dupla de diretores filmava Lorna Washington: Sobrevivendo a Supostas Perdas, documentário de 2016 que estrela aquela que foi a maior parceira de palco de Luana Muniz. A partir daí, os órfãos de coração da icônica Rainha da Lapa tentam colocar em palavras quem, de fato, foi a mulher que acolheu, guiou e, quando necessário, meteu o cacete em quem cruzava seu caminho. Apesar do leque rico de entrevistados, é Luana quem conta sua própria história. Antes de falecer, em 2017, a artista eternizou nas câmeras de Rian Córdova e Leonardo Menezes um pouco do caminho inóspito, agressivo e desafiador que precisou enfrentar.
Antes de ter sido a “travesti que posou ao lado do Padre Fábio de Melo”, Luana Muniz foi presidente da Associação dos Profissionais do Sexo do Gênero Travesti, Transexuais e Transformistas do Rio de Janeiro, fundadora do Projeto Damas, que capacita pessoas trans para o mercado de trabalho, e dona do Casarão rosa localizado na Av. Mém de Sá, nº 100. Foi em seu palácio da Lapa que a mulher se tornou uma mãe para a população vulnerável que o habitava. Prostitutas, pessoas soropositivas, membros da comunidade LGBTQIA+, pessoas em situação de rua – resgatar a memória de Luana é resgatar a memória de cada um.
O que Luana Muniz – Filha da Lua economiza em técnicas cinematográficas, esbanja na construção imagética e textual de sua protagonista. A vida e o legado de Luana são objetos de estudo dos diretores, que hierarquizam seus personagens, dando ao espectador lampejos históricos. Muniz, obviamente, é a estrela do show. Filmada sempre paquerando a câmera, ela se vê acompanhada de suas grandes amigas, Claudette Colbert e Lorna Washington.
Mesmo com as três nunca aparecendo juntas, o documentário costura suas falas e percepções a partir de um vínculo emocional poderosíssimo. Claudette, transformista que aparece desmontada como Cláudio, desempenha a função de apresentar-nos uma Luana antes da Lapa, enquanto Lorna percorre o lado artístico que comandava números musicais, peças de teatro e filmes globais. A dança temática, que vai de uma adolescência difícil nas calçadas da ditadura até o início da vida de Luana como uma artista completa, enche o escopo do filme para que o roteiro encontre deixas pontuais para a inserção de novas figuras.
A cantora Alcione, madrinha e apoiadora do projeto mantido no Casarão, é o grande elo do público para com essa narrativa. A presença da Marrom é um atestado de fé de Filha da Lua, e os breves depoimentos da cantora apenas reforçam o que já estava claro: Luana Muniz viverá para sempre na memória de todas as pessoas que tocou. Uma delas, por sinal, é o ator Luis Lobianco, que relembra, arrependido, das noites na Lapa em que a observava de longe, com um receio respeitoso de se aproximar. Depois do falecimento da artista, Lobianco dedicou toda a temporada de sua peça Gisberta a ela.
Pontuais, alguns dos outros relatos ilustram os momentos em que a mídia estampou Luana por todos os lados: o repórter Felipe Suhre comenta o burburinho do Profissão Repórter; o Padre Fábio de Melo compartilha os bastidores da infame foto. Mas, dentre todos, é o daquele quarteto de mulheres confidenciando a vida no Casarão o mais expressivo e cheio de significado. Juntas, Vanessa Muniz Brasil, Aretha Rayalla, Luiza Muniz e Eva Macpherson atam nós sentimentais, revivem episódios e sorriem.
E é na companhia delas, e apenas delas, que Rian Córdova e Leonardo Menezes visitam, por fim, o túmulo da Guardiã da Lapa. Sem chororô nem ganchos melosos, afinal, quem disse que Luana Muniz morreu? Seja na praça que carrega seu nome ou nos grafites que estampam seu bordão, seja no relato de suas garotas ou em um documentário que traz o melhor e o pior de uma vida de batalhas, a presença da Filha da Lua ronda o centro carioca e, se apurar bem os ouvidos, ainda é possível ouvir um sonoro “vai pro inferno!” ecoando nas esquinas da Cidade Maravilhosa.