Leonardo Teixeira
Em Lovecraft Country, é constante o diálogo entre passado e futuro. “Quando meu neto nascer, ele será minha fé transformada em carne e osso”, uma personagem diz, em um dos muitos climaxes da trama. Aqui, ícones e referências da cultura negra dão liga a uma trama sobre ancestralidade. Não só sobre as qualidades e ensinamentos passados de mãe para filha, mas também as feridas. A inspiração na obra de um babaca eugenista, em uma história protagonizada por pessoas pretas, adiciona mais força ao texto, que explora a monstruosidade como característica inerente ao ser humano.
É a década de 50, em Chicago. Atticus, ou Tic (Jonathan Majors), retorna ao distrito negro onde cresceu, para investigar o paradeiro de seu pai. Mas ele está diferente. Agora é um veterano da Guerra da Coréia, para a qual se alistou fugindo do ambiente familiar violento. Pistas do pai o colocam na estrada, em direção à cidade fictícia de Ardham, no interior de Massachusetts.
Mas ele não vai sozinho. Letitia, ou Leti (Jurnee Smollett), é uma fotógrafa e ativista que também está de volta ao pedaço, depois de anos ausente do seio familiar. Sua mãe morreu há pouco tempo, mas ela não compareceu ao velório. George (Courtney B. Vance), tio de Tic, completa o trio de viajantes. Ele é editor do The Safe Negro Travel Guide (em inglês, O Guia de Viagem do Negro Seguro), uma versão fictícia do guia editado por Victor Hugo Green entre 1933 e 1966 sobre locais seguros para hospedagem e alimentação de pessoas negras nos Estados Unidos.
A road trip é o ponto de partida de uma aventura macabra e emocionante. Em plena vigência do Jim Crow, as leis segregatórias do país que vigoraram até 1964, a narrativa dessas duas famílias negras passa por momentos em que a tensão racial compete com o horror. Fica difícil saber o que mais assusta.
O que se segue são dez episódios explosivos que mesclam terror, ficção científica e aventura, com revisitações a fórmulas desses gêneros. Os heróis enfrentam monstros, rituais de magia, espíritos obsessores, entre outras entidades, mas pouco lhes é explicado. O ritmo rápido e cortante do texto não permite grandes exposições. Só que esses elementos não são estranhos aos personagens, todos grandes fãs de narrativas fantásticas.
Os autores dessas histórias, porém, não retribuem a admiração. No cinema de horror, é muito comum que os raros personagens negros presentes nas produções sejam o foco do medo ou os primeiros a morrer. A historiadora americana Robin R. Means Coleman disseca essa relação problemática no livro Horror Noire: A Representação Negra no Cinema de Terror.
Outro exemplo é o próprio H.P. Lovecraft, tido como o criador da literatura de terror cósmico e inspiração para Território Lovecraft, o livro que deu origem à série. Existem evidências de que o escritor, que morreu em 1937, acreditava nas teorias racistas do eugenismo e flertava com o nazismo.
Consciente do amor não-correspondido de seus personagens pela literatura fantástica, a produção liderada por Misha Green ressignifica a obra do racista americano, transformando-a num testamento da resiliência negra. Um exemplo é a cena inaugural do show, em que o jogador de beisebol Jackie Robinson, conhecido por ser o primeiro homem negro a jogar na liga principal americana, luta em uma batalha alienígena.
Diversos outros ícones, como James Baldwin, Elza Soares, Sonia Sanchez e Zora Neale Hurston, assim como alguns eventos históricos reais, ajudam Green a desenvolver os episódios. É uma frase de Hurston, inclusive, que nos ajuda a entender a jornada desses personagens. “Se você ficar em silêncio sobre sua dor, eles irão te matar e dizer que você gostou”, ela escreveu. Os grandes momentos de Lovecraft Country ocorrem quando seus heróis se permitem demonstrar raiva pelas injustiças e horrores que vivem. E respondem aos ataques.
Não é de hoje que a raiva e a desobediência civil são usadas como válvula de escape na exploração de tensões sociais na arte. A fúria pela injustiça racial é força motriz de trabalhos de Nina Simone, Spike Lee, Basquiat, Solange e Beyoncé Knowles, Linn da Quebrada, entre tantos outros.
Entrar em contato com a própria indignação faz parte do processo de cura pelo qual passam. Montrose (interpretado pelo brilhante Michael K. Williams) protagoniza o arco em que isso mais se evidencia. Williams explora da forma mais crua possível a trajetória de um homem que nunca pôde processar os efeitos das violências que sofreu durante a vida. E foi para o filho o único pai que ele sabia ser.
Hippolyta é outro destaque. Aunjanue Ellis interpreta uma mulher sufocada pela maternidade e pelo casamento, que embarca numa jornada solitária para descobrir quem é. Por sua vez, a irmã mais velha de Leti, Ruby (Wunmi Mosaku), já sabe quem é. Mas procura uma fuga da realidade, que é tão dura.
Jordan Peele e J.J. Abrams também assinam a produção executiva da série, que quase sempre tem um comentário sociopolítico inteligente a tecer sobre temas que pulsam há décadas. O sexto episódio, Meet Me in Daegu, por exemplo, é um texto inteligentíssimo sobre o fenômeno do oprimido que se torna opressor. Narrativas LGBT, violência de gênero, afrofuturismo e colonialismo são alguns outros temas que o show explora com elegância.
Em uma história de fantasia e terror com tantos pés fincados na realidade, quem realmente são os monstros? O primeiro ano de Lovecraft Country não responde ao questionamento, mas levanta reflexões muito bem-vindas. E triunfa ao estudar como podemos superar essas perversidades, para que a herança que deixamos para nossos tataranetos seja a cura. E não nossos traumas.