Eduardo Rota Hilário
Esqueça os mais de dez anos revolucionários da carreira de Lady Gaga. Isso mesmo, esqueça. Ou pelo menos não se apegue a eles. Hoje, nós vamos falar de tradição: o jeito mais Gaga de ser tradicional possível. Não, a Mother Monster não abandonou o pop. Mas Love For Sale (2021), seu novo álbum ao lado da lenda do jazz Tony Bennett, segue um estilo bastante clássico do início ao fim. Longe de arquitetar revoluções, o segundo disco conjunto da dupla ainda assim é capaz de inovar a discografia da cantora. E por ter a intenção de ser um tributo ao compositor norte-americano Cole Porter, é um pouco injusto classificá-lo como caxias. Afinal, ele cumpre muito bem seu papel, destacando-se por cargas emotivas e preciosidades vocais.
Em uma linha temporal recente, Gaga saiu do planeta Chromatica para revisitar o queridinho álbum Born This Way, de 2011. Ao lado de uma interessante lista de artistas pertencentes ou aliados à comunidade LGBTQIA+, a cantora deu à luz a versão comemorativa Born This Way Reimagined (2021), celebrando os dez anos do disco original. Logo em seguida, ainda exercendo seu papel de curadora zelosa, com participação extremamente ativa do produtor BloodPop®, Stefani Germanotta agitou a internet com Dawn of Chromatica (2021), conjunto de remixes do badalado CD de 2020. Neste contexto, e pouco antes do lançamento do filme Casa Gucci (House of Gucci), nasceu Love For Sale, irmão ímpar de todas essas obras.
Por ser dona de trabalhos multifacetados, construídos em diversas camadas, e que contemplam os mais diferentes gostos artísticos, hoje em dia, nenhuma pressão que tente guiar os passos de Lady Gaga faz qualquer sentido – se é que já fez algum dia. Seja para os fãs, o público mais amplo ou a crítica, Gaga já se provou uma artista completa, versátil como poucas figuras de sua geração. Habilidosa instrumentista, atriz, cantora e compositora, com admirável domínio vocal e criativo, a Mother Monster pode – e deve – fazer o que seu coração mandar. E se agora é hora do jazz, nós precisamos, em primeiro lugar, ter consciência de que uma atmosfera mais “comportada” dominará a nova era.
Isso tudo não é novidade. Há dez anos, ao participar do projeto Duets II (2011), igualmente planejado por Tony Bennett – que também iluminava nomes como Amy Winehouse e Mariah Carey -, o único sinal de rebeldia na presença de Lady Gaga estava em seu cabelo azul e algumas dancinhas em estúdio. Já em 2014, durante a era do vencedor do Grammy de Melhor Álbum Pop Vocal Tradicional, Cheek To Cheek, as boas irreverências se limitavam a roupas extravagantes e interpretações ousadas – algo que não é exclusivo de Gaga no ambiente do jazz. Vale ressaltar, aliás, que, desde meados desse último período, uma homenagem a Porter já era planejada pela dupla mais carismática na atualidade da Música norte-americana.
Não é exagero afirmar que são raros os duetos inusitados que transbordam química na contemporaneidade – tendo em vista os duradouros, pelo menos. No passado, podemos destacar as trocas honestas que existiam entre Freddie Mercury e Montserrat Caballé, sintetizadas sensivelmente no álbum Barcelona, de 1988. Hoje em dia, por outro lado, essa realidade pode eleger como símbolo máximo as figuras de Tony Bennett e Lady Gaga. Em cada clipe, performance, entrevista e conversa dos dois, aos quais pouco a pouco temos acesso, percebemos que, apesar das diferenças, ambos são almas gêmeas musicais. E, por mais que a Mother Monster acredite que Amy Winehouse estaria em seu lugar se estivesse viva, sabemos que o coração de Tony teria espaço para as duas.
Em Love For Sale, a afeição entre lendas da Música é perceptível em mais de um momento. Abrindo brilhantemente com It’s De-Lovely, o disco nos convida a mergulhar no mais puro jazz assim que ouvimos uma agitada introdução instrumental. Sem demora, Gaga assume magistral e graciosamente a canção. “Eu sinto um impulso repentino de cantar/o tipo de cantiga que invoca a primavera”, expressa a cantora. Pouco tempo depois, é a vez de Tony Bennett sugerir passeios noturnos – e é impossível não imaginar como seria uma voltinha com os dois pelas noites estadunidenses. Nessa faixa de abertura, a menos que você seja uma pedra, seu coração já foi tomado pela forte conexão entre duas diferentes gerações musicais.
Night And Day, por sua vez, parece ser o registro menos brilhante do álbum. Possivelmente, isso acontece por conta de um início que causa estranheza: há algo desencontrado entre instrumentos e vozes, ao menos em relação ao restante da faixa. Fora isso, é simplesmente uma canção que não se destaca tanto quanto as outras. Na contramão, sua sucessora, a grande responsável por dar nome ao CD, é ousada, coesa e inteiramente interessante. Fazendo uma possível alusão a trabalhos sexuais, a faixa-título coloca Bennett como o narrador de uma história em que Gaga, como boa atriz que é, representa um papel – quando o único som nas ruas vazias pertence aos passos de um policial, essa persona feminina dá início às suas vendas de amor.
Em continuidade, Do I Love You surge não só como a primeira apresentação solo de Lady Gaga, mas também como uma das mais belas imersões de toda a obra. Embora seja uma cantiga apaixonada, não é difícil imaginar a cantora olhando diretamente nos olhos de Tony ao externalizar a nitidez de um amor sincero e vital. Como em boa parte do disco, a alma de Gaga está aqui à mostra, nua como uma figura lendária, que se revela somente aos corações abertos à verdade: isto é, àquilo que realmente se quer cantar. Podem até não gostar da Mother Monster no jazz, mas é impossível negar que ela se entrega de corpo e alma nas interpretações desse gênero musical – som que a acompanha desde suas origens.
Ainda nos destaques, é em I’ve Got You Under My Skin que notamos o auge da reciprocidade entre os dois artistas. Gaga pode muito bem direcionar os versos “você está tão fundo em meu coração/você é realmente uma parte de mim” ao companheiro de longa data. Da mesma forma, os trechos cantados por Tony poderiam ser um testemunho de sua admiração pela artista excêntrica. E para quem desejar um gostinho de Brasil, a dupla dinâmica incorpora de maneira muito elegante nossa bossa nova em I Concentrate On You. Não menos importante é o lead single I Get A Kick Out Of You, uma das melhores canções do álbum – que, por sinal, não segue a linha de “elogios mútuos”, um dos maiores valores simbólicos de Love For Sale.
Finalizando as faixas mais atrativas do CD, So In Love se destaca pela dramaticidade e beleza das apresentações individuais de uma voz que, há tanto tempo na estrada, não perdeu seu brilho único: a voz de Bennett. Com ares teatrais, a canção é mais uma das inúmeras declarações de amor do disco. Mais ou menos do mesmo estilo, e com uma abertura digna de musicais clássicos, é Let’s Do It – música que nos remete diretamente a uma versão brasileira da mesma composição, gravada por Elza Soares e Chico Buarque em 2002, Façamos (Vamos Amar). Por fim, é inevitável mencionar a faixa que já rendeu alguns – poucos, mas bons – memes por aí: You’re The Top. Isso porque ela foi ressignificada pela internet, atribuindo aos termos bottom e top os significados passivo e ativo, referentes à comunidade gay.
Ao conter tantos detalhes e nuances, Love For Sale definitivamente não é mais um Cheek To Cheek da vida. Emotivo para além das questões de saúde de Tony Bennett – que, sem dúvida, também comovem -, como o Alzheimer, essa pérola é mais uma singularidade na discografia dos dois artistas. E se, por um lado, esperar perucas à la Cher, ou vestidos decotados nas performances “mais sérias” de Gaga é um ponto super válido, não podemos nos esquecer de que cada momento da vida dessa cantora vem acompanhado de algumas propostas. Por isso, qualquer expectativa que fuja muito desses recortes pode facilmente provocar decepções – é bom lembrar, portanto, que Gaga não tem responsabilidade sobre essas frustrações.
Em adição, como já foi brevemente mencionado, Tony Bennett está diagnosticado com Alzheimer desde 2016. Além disso, por outras questões médicas, ele também cancelou alguns de seus últimos compromissos profissionais. Longe de justificar qualquer opinião ou falha com essas informações, mas é importante ter em mente que alguns limites rondaram, com certeza, e mesmo que minimamente, o tão delicado Love For Sale: seja no processo de criação ou divulgação do álbum. Por serem fatos repetidos à exaustão em diferentes veículos de comunicação, eles foram reservados ao fim deste texto – mas isso não implica que sejam menos importantes, ou indignos de comporem esta análise.
De fato, o novo disco de Tony e Gaga é refinado na medida certa. Às vezes, um pouco brincalhão – basta escutar as risadas do artista veterano em I’ve Got You Under My Skin. E talvez seja mesmo mais conciso e coeso do que seu antecessor Cheek To Cheek, o que possibilita aos ouvintes experiências dentro de um clima mais confortável e menos cansativo – mas não podemos nos esquecer de que, para Gaga, fugir da coesão esperada pelo parâmetros artísticos do momento também gera bons frutos, a exemplo do inesquecível e injustiçado ARTPOP.
Incontestável, no entanto, é afirmar que Love For Sale é um disco muito apaixonado. Provavelmente, podemos classificá-lo assim mesmo: como um disco da paixão. Um trabalho em que os sentimentos românticos são transformados em fraternidade o tempo todo. É muito provável que seja também um agradecimento e uma tentativa de retribuição por parte de Lady Gaga, tendo em vista tudo que Tony já fez por ela – seria impossível esquecer a confessional declaração “ele salvou a minha vida”, proferida pela Mother Monster em 2014. Indo além, Love For Sale é, sobretudo, a despedida em grande estilo que toda lenda viva merece.