Há 10 anos, Lorde lançava o fermento de uma geração: Pure Heroine

Capa do álbum Pure Heroine. O fundo é totalmente preto. Na parte superior central, está escrito “Lorde” em letras maiúsculas e na cor prata. Logo abaixo, está escrito “Pure Heroine” em letras maiúsculas e na cor prata.
Lorde não era hipertensa para ficar aguentando músicas sem sal, então decidiu criar sua própria receita com Pure Heroine (Foto: Universal Music)

Ana Cegatti

Uma parede clara e uma camisa branca são componentes clássicos de vídeos gravados por subcelebridades que tentam se desculpar por algum erro. No entanto, a neozelandesa Ella Marija não usou tais componentes no clipe de Royals para limpar alguma defecação, mas para jogá-la no ventilador. Há uma década, as rádios anunciavam a transformação de Ella em Lorde e ecoavam melodias que fizeram da onda alternativa da época um tsunami. Naquele momento, a indústria musical precisava fazer uma escolha: se afogar ou aprender a surfar. Lançado pela Universal Music e produzido por Joel Little, Pure Heroine é um álbum que nunca precisou pedir desculpas, já que Lorde jamais sentiria remorso por um erro tão ingênuo: amar demais. 

Você não acha entediante como as pessoas falam? é a cartada que inaugura o disco. Aliás, é uma pergunta cuja resposta pode ser abrasileirada ao relembrar a famosa letra de Fala Mal de Mim escrita por Ludmilla: “Ô coisa escrota, pode falar à vontade”. Eis o primeiro ensinamento do álbum de estreia da neozelandesa: não bateis palma para maluco dançar. Afinal, não vale a pena passar noites em claro sendo uma plateia agradável para indivíduos medíocres que não deveriam sequer estar no palco. Inspirada pela efervescência mística de Stevie Nicks e pelos trejeitos desvairados revolucionários de Kate Bush, Lorde não só escreveu o próprio espetáculo, como também incentivou outros a fazer o mesmo.

Em vez de aproveitar a moral para se autointitular diferente das outras garotas, a nomeada Mulher do Ano pela MTV em 2013 preferiu convidá-las para se sentarem junto a ela na mesa do novo indie pop. Billie Eilish e Alessia Cara são alguns dos nomes que trocaram um banquete gourmet por um petisco caseiro, saboreando o principal tempero da receita difundida por Lorde: o minimalismo. Este, por si só, variou o cardápio de uma juventude cuja dieta era unicamente pautada em músicas com muitos ingredientes e pouco sabor. Assim, Pure Heroine provocou uma fome que só seria saciada caso outras artistas também colocassem a mão na massa e fizessem uma boa mistura de sensibilidade e intimidade com pitadas de female rage

Apesar de grandes feitos como ganhar dois Grammys, atingir o topo da Billboard e sustentar um batom escuro, o legado de Ella Marija reside, na verdade, em uma luta incessante contra a frieza. Durante uma viagem à Antártida, a neozelandesa deu um passo significativo em sua jornada de autoconhecimento ao descobrir que definitivamente não é um pinguim. Enquanto este choca ovos, Lorde segue chocando a indústria musical ao contrariar a lógica mercadológica, isto é, ao insistir em colocar sua autenticidade, por mais disfuncional que seja, acima de vontades alheias. Diga-se de passagem: a artista só aceitaria se tornar tão fria quanto um iceberg se seu ex-namorado fosse o Titanic. 

Pure Heroine foi a primeira demonstração da voracidade da cantora, que viria a defender com unhas e dentes a descriminalização da existência de indivíduos popularmente conhecidos como emocionados. O segundo filho, Melodrama, nem tenta disfarçar a essência sensível e perturbada de Lorde, a qual transformou o rancor que sentia por um homem mal-apessoado em repertório e lucro, além de ter dado visibilidade às que sempre são taxadas de birutas intensas. Apesar das inúmeras tentativas dos próprios fãs de colocar um contra o outro, os dois discos vivem em harmonia. O primeiro, como um bom irmão mais velho, abriu caminho para o segundo que, embora seja mimado, não foi ingrato e aproveitou bem a deixa para ir além da estética subversiva, aventurando-se nos prazeres banais da juventude, tão temidos por Pure Heroine.

Foto retangular dos bastidores da gravação do clipe de Tennis Court. Ao fundo, há dois bancos de madeira clara; uma cômoda, também de madeira clara, e uma caixa de som. Em foco, à esquerda, está um homem branco adulto de cabelos pretos. Ele está usando uma blusa de manga longa preta desbotada e está segurando uma câmera apontada para um espelho. Ao lado direito desse homem, está a cantora Lorde, uma mulher branca adulta de cabelos castanhos. Ela está usando uma blusa de renda por cima de um top preto. Sua mão direita está levantada e seu dedo indicador está tocando seu polegar. Atrás de Lorde, há uma mulher branca adulta de cabelos loiros. Sua cabeça está cortada pela imagem. Ela está usando uma blusa de manga longa cinza e uma pulseira preta no braço direito. Ela está fazendo uma trança no cabelo de Lorde. No canto direito da imagem, há uma pessoa adulta branca usando um moletom verde. Seu rosto e metade do seu corpo estão cortados pela imagem.
Em Pure Heroine, Lorde foi uma espécie de rainha dos baixinhos neozelandesa (Foto: Ono Field)

O primogênito de Marija despontou como uma homenagem aos filhos que choram quando a mãe não os vê. A voz açucarada de fumante e as batidas violentas presentes na faixa Glory and Gore, por exemplo, tentaram fazer do disco uma fonte inabalável de rebeldia, mas sem sucesso, já que ganhar uma discussão no grito não era do feitio de Lorde. Na verdade, ela se mostrou defensora dos que sentem nó na garganta quando expõem centímetros de vulnerabilidade, isto é, quando ousam dar uma chance ao imprevisível. Este, por sua vez, acaba coestrelando o álbum junto ao tom agridoce e empático da artista, a qual dedicou algumas músicas para nichos marginalizados, a saber: Buzzcut Season para calvos, 400 Lux para caipiras e Ribs para ex-sonhadores. 

Uma parede coberta de pôsteres e o mau cheiro de pacotes abertos de salgadinhos compõem o cenário do primeiro ato da história de pessoas que, antes de dormir, olham debaixo da cama com medo de encontrar o maior vilão das narrativas infantojuvenis: o tempo. Embora tenha o poder de evocar estéticas sinestésicas, escrever letras memoráveis e manter contato com Taylor Swift, Lorde não consegue voltar atrás e, muito menos, incentivar outros a fazer o mesmo. Assim, a quarta faixa de Pure Heroine, Ribs, é a trilha sonora perfeita para tirar os pés do chão ou começar a pular tão desesperadamente a ponto de levantar voo e ir para bem longe da realidade, a qual insiste em trazer à tona a pequenez e a impotência humana. 

O segundo ensinamento pode ser traduzido na letra de Só Depois do Grupo Revelação: “Que na vida o hoje tem que aproveitar/Porque/Eu não sei se o amanhã há de chegar”, uma vez que remoer o passado asfixia um processo doloroso, mas lindo, de valorizar o presente e aprender a sentir saudade, não falta, do que já passou. Pure Heroine expressa, sobretudo, uma gradual aceitação do fato de que não é possível se agarrar às mesmas ruas e às mesmas casas por muito tempo, ou seja, a familiaridade das cidades pequenas é inevitavelmente substituída pelas luzes brilhantes das noites metropolitanas que iluminam o começo do fim da adolescência. 

Depois de 10 anos, a letra de Buzzcut Season, “Eu sou a única para quem você conta seus medos”, ainda define a índole confiável de Lorde, mesmo que alguns a considerem dissimulada por ter simplesmente feito o que não conseguiram: crescer. De fato, há um abismo entre a garota rebelde de 16 anos que teimou em lutar contra o tempo e a mulher adulta cujo terceiro disco, Solar Power, expressou sua busca, não pela volta, mas pela memória das paredes cheias de pôsteres, do cheiro dos pacotes de salgadinhos e das ruas que testemunharam muitos papos furados, assim como caminhadas sem rumo. No entanto, essa diferença significativa entre as versões de Ella Marija não revela uma hipocrisia, mas uma coragem de, enfim, fazer as pazes com o tempo. 

Lorde talvez seja uma maluca cuja dança é digna de palmas. Dentre tantas denominações possíveis para a artista, a de David Bowie não deu trela para perreco: a neozelandesa é a voz do futuro. Além do mais, seu álbum de estreia é o único amigo que precisamos para nos ajudar a dizer adeus a quem um dia fomos. O coro de Ribs fez muitos se sentirem menos sozinhos e os acordes tímidos da última faixa, A World Alone, fez uma geração inteira perder a vergonha de dançar, mesmo sem um par. No fim, Pure Heroine foi uma das mais belas tentativas da língua inglesa de expressar o conjunto de sentimentos cujo nome é encontrado em pouquíssimos dicionários: saudade.

Um comentário em “Há 10 anos, Lorde lançava o fermento de uma geração: Pure Heroine”

  1. ler sua resenha foi o mais próximo que cheguei de experienciar o Pure Heroine pela primeira vez em tempos. assim que terminei de ler Ribs começou a tocar aqui. não te conheço mas obrigada. <3

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