Enrico Souto
“Nós não paramos, mas o tempo sim”. Há uma conduta inusitada nessa afirmação, não? Bem, é assim que Leon Bridges escolhe abrir Motorbike, o segundo single do seu terceiro álbum de estúdio, Gold-Diggers Sound. É comum que o tempo seja entendido, tanto na Arte quanto no inconsciente coletivo, como uma entidade intocável, totalmente fora da nossa compreensão e controle, que existe independente da nossa capacidade de percebê-lo, e que é efêmero por definição. Ou seja, que se vai apaticamente, e quem não o acompanha é fatalmente suprimido.
À vista disso, a frase gera estranhamento pelo modo com que Bridges rejeita essa ideia de tempo e inverte a lógica vigente. Dessa vez, o tempo se transforma em um elemento mais próximo, reconhecível e sujeito à perspectiva de quem o enxerga, ao passo que a propriedade do movimento, do dinamismo e da mudança é transferida ao indivíduo, agora brindado por autonomia e em consonância com sua realidade. Leitura intrigante, de fato. Entretanto, o que ele quer dizer com isso?
O trabalho de Bridges sempre esteve atrelado ao tempo. O texano decidiu se lançar na indústria em 2015 com o disco Coming Home. Seu título alude à retomada de sua ancestralidade, a partir das raízes musicais do soul e do jazz. Porém, sua afeição aos gêneros era tamanha que ele decidiu recriá-los com a maior precisão possível e, consequentemente, pouco se via de uma assinatura própria do artista. Realmente havia um conceito pujante que brotava ali, mas é indiscutível que o álbum estava muito mais próximo de uma experimentação que de uma obra lapidada, e Leon Bridges ainda buscava sua identidade naquele cenário.
Anos depois, em 2018, seu trabalho começava a gerar frutos com o LP Good Thing, em uma musicalidade mais refrescante. Em um claro registro de R&B, se aproximando com maior firmeza do synth-pop e neo-soul noventistas, Bridges se demonstrava suscetível à sonoridades contemporâneas, ainda que mantendo em voga a estética retrô que o consolidou antes. Infelizmente, o disco não foi tão bem recebido pelo público e crítica na época, porém o cantor já parecia constituir uma voz mais singular e consolidada.
Agora, com Gold-Diggers Sound foi um pouco diferente. O terceiro álbum de estúdio de Leon Bridges é um trabalho que fora constituído em dois anos, em um longo processo de estudo e criação, em parceria com os produtores Ricky Reed e Mercereau, junto do talento de outros grandes músicos, como Terrace Martin e Robert Glasper. O resultado desse exercício é uma evolução natural dos dois projetos anteriores: oferecendo a revisita nostálgica à Música dos anos 60, assim como Coming Home, porém derivando de uma direção mais consciente e madura, misturando o vintage e o moderno de maneira orgânica e prestigiosa, tal qual Good Thing.
Devido a isso, diversas canções do novo registro propõem uma sobreposição de melodias acústicas, puxadas diretamente de suas inspirações no blues, com uma produção carregada de elementos eletrônicos. As suaves guitarras de Magnolias e Sho Nuff, que são logo acometidas por beats sequenciados, característicos do trap e do R&B moderno, são um exemplo emblemático disso. Bridges desafia a expectativa de seus fãs, criando uma sonoridade ímpar e imprevisível, fora de sua zona de conforto.
Há uma característica crucial em como Leon situa seu projeto. O título, Gold-Diggers Sound, leva consigo o nome do estúdio-bar-hotel em que foi gravado. Localizado em Los Angeles, o artista vencedor do Grammy passou a morar no Gold-Diggers durante todo o período de composição e gravação do álbum, e não saiu até que terminasse. À vista disso, ele atrela sua música diretamente ao local no qual foi concebida, constituindo uma conexão material e territorial com o espaço e tempo em que está inserido.
Todas as músicas respiram uma espécie de ímpeto por sossego e ócio. Mesmo aquelas mais digitalizadas levam consigo a proximidade de se estar assistindo um show ao vivo em um bar de esquina, sentado em uma mesa redonda ao lado de amigos e de um bom copo de cerveja. Bridges convida o ouvinte para essa viagem imersiva, ao mesmo tempo que despojada, levando-nos a um universo consolador e nostálgico – inclusive de um momento pré-pandêmico, quando ainda podíamos vivenciar encontros corriqueiros sem medo.
Logo, ao tentar incorporar essas sensações, Gold-Diggers Sound se torna o projeto mais contagiante do cantor e, sem dúvidas, onde ele mais permite entreter-se. Desde faixas radiantes de teor celebratório como Motorbike, até canções românticas com conotação mais sensual e diligente como Steam e Details, ao ouví-las é possível imaginar o sorriso estampado no rosto de Leon enquanto declama seus versos.
De qualquer forma, apesar dessa leveza, Gold-Diggers Sound também se mune de lamúrias. Blue Mesas, que encerra o álbum, evoca um tópico que desponta na surdina de quase toda a tracklist: uma demanda por validação interpessoal, que então leva a um sufocante estado de solidão. Estado esse que não necessariamente implica em isolamento, como Bridges aponta ao questionar de que modo é possível ele se sentir só “ainda que rodeado por aqueles que conhece”. A faixa também coloca em questão a masculinidade tóxica, que impede homens de expressarem seus sentimentos, quando ele, mesmo admitindo que há uma dor bem no fundo da sua alma, insiste em negar ajuda.
No caso de Leon, essa exigência compulsória em performar austeridade ganha outro fardo por seu lugar enquanto homem negro. E o efeito final disso acaba sendo inverso, porque quanto mais persiste em não demonstrar emoções, mais elas são depositadas em um elemento externo, provocando, dessa forma, relações de dependência. Essa figura masculina estilhaçada é, enfim, humanizada em Why Don’t You Touch Me, onde o artista assume um eu-lírico que, em decorrência de suas atitudes possessivas, viu gradualmente o amor de sua namorada findar. Então, em desespero, ele implora para que ela retorne aos seus braços. Talvez porque ele realmente a ame, sim, mas também – e Bridges faz questão de não esconder isso – por uma carência de atenção que ele mesmo nutre.
Embora ocasiões isoladas de pura melancolia se façam presentes, Gold-Diggers Sound tem outra maneira, mais particular, de expressar suas fragilidades. Da mesma forma que, musicalmente, o retrô sempre caminha junto com o moderno, Leon Bridges consegue criar, em sua mensagem, um equilíbrio ideal entre as angústias e júbilos, de tal modo que elas passam a naturalmente coexistir no mesmo espaço, e não há nenhuma incompatibilidade nisso.
E é isso que a faixa Don’t Worry alcança com muito esmero. Compartilhando semelhanças com Why Don’t You Touch Me, Bridges e a vocalista Ink interpretam um diálogo entre duas metades de um relacionamento tóxico que foi desfeito, enquanto meditam sobre as experiências que tiveram juntos. O curioso aqui é como a faixa aborda uma temática lúgubre em paralelo com vocais entusiasmados e um instrumental ardente de country, que não ignora o peso do terreno espinhoso que atravessa, ao mesmo tempo que nunca deixa a escuridão tomar conta.
Outro exemplo paradigmático desse esforço em procurar otimismo nos piores cenários é Born Again, indicada ao Grammy 2022 em Melhor Performance Tradicional de R&B. Estabelecendo firmemente os parâmetros do disco logo na abertura, ela mostra um Bridges confuso e perdido nos próprios pensamentos, que encontra o escape de seus conflitos ao fechar os olhos, limpar a mente, e deparar-se ali com os amores e afagos de um amado alguém, que não mais está presente. “Eu encontro paz no vale da sua verdade”, atesta, e descobre, no limbo das suas memórias, o combustível que precisa para nascer de novo.
A melodia cordial das trompas que imbuem a faixa, produzida pelo glorioso jazzista Robert Glasper, é preenchida pela voz áspera e afável de Leon Bridges, recitando uma letra sobre o luto e as dores que são evocadas com a perda, porém, principalmente, sobre os afetos que ainda ficam e que levamos eternamente conosco. E o luto, de fato, não é um tema incomum em Gold-Diggers Sound. O primeiro single do disco, Sweeter, foi lançado na segunda metade de 2020, em resposta ao assassinato atroz de George Floyd e a onda de protestos da Black Lives Matter daquele ano. No entanto, diferente de outras canções que abordaram muito bem a pauta, como a fervorosa The Bigger Picture, de Lil Baby, o tom não é de revolta, e sim de lamentação.
A inserção da bateria sintética aos acordes de piano do multi-instrumentista Terrace Martin estabelecem um caráter melancólico à música, amplificado ainda mais pelas palavras desoladoras do vocalista. “Esperando por uma vida mais doce/ Em vez disso, sou apenas uma história que se repete”, ele declara, em nome de todos os jovens negros mortos pela polícia. E é esse tom que rege os quase 3 minutos da faixa. Leon Bridges está longe de tentar provocar um levante. Na verdade, sua revolta parte de outro lugar. Ele usa desse palanque para, única e somente, desabafar e expor, com toda a sinceridade do mundo, sua frustração. Trata-se de uma manifestação do puro e simples cansaço, e é diante disso que se apresenta sua potência. Depois de tanto sufoco – como alguém que nunca teve direito ao choro, e que esteve em silêncio por tempo demais – Bridges possibilita suas emoções florescerem e transforma o desabafo em alívio.
Liricamente, esse é o melhor momento para Leon Bridges. Afiado como nunca, em Gold-Diggers Sound ele incorpora inúmeras personas diferentes – possivelmente fragmentos isolados de si – e, com todas elas, a superficialidade jamais é o suficiente. Mergulhamos no âmago de cada uma, investigando suas nuances e contradições, e formando, no interior de suas 11 faixas, o mais veraz e humano dos retratos. Sempre alçando sua vulnerabilidade, inclusive sobre arquétipos socialmente enrijecidos, o cantor sustenta sua presença na categoria de Melhor Álbum de R&B no Grammy 2022 com uma obra única no nosso tempo.
E então voltamos ao tempo. Qual o interesse de Leon em pará-lo? A proposta dele no novo registro, podemos dizer, é explorar as faces da Música enquanto símbolo de seu período: retirando sonoridades remotas de seu espaço-comum e inserindo-as em um ambiente inabitual, à medida que também move as novas tendências para fora de sua zona de conforto, colocando o passado e o presente para caminharem juntos e construindo, a partir disso, praticamente um novo gênero – descolado do tempo e, simultaneamente, ciente de seu contexto material.
Mas, retomemos a frase “Nós não paramos, mas o tempo sim”. Para além de como o tempo é referido, Leon Bridges destaca nossa condição de mutabilidade. A imagem do humano é destituída da posição de estática, inerte, para assim dotá-la de vida. E, por fim, é isso que sintetiza Gold-Diggers Sound. Essencialmente, Leon Bridges narra arcos de redenção, partindo sempre da perspectiva de quem é desumanizado, subalternizado, e de pessoas que não são permitidas ao erro. Através do lúdico e do íntimo, Bridges busca devolvê-las à posição de humanidade e propor uma visão emancipatória e otimista para o futuro. Nunca é cedo para mudar. Nós não somos nossas falhas. A redenção é possível. O perdão é uma alternativa. E é somente parando o tempo que podemos olhar para dentro.