Mariana Chagas
Se hoje já não é fácil ser negro, latino e parte da comunidade LGBTQIA+, era muito pior nas ruas dos Estados Unidos nos anos 80. Desrespeitados e segregados, a solidão atormentava o dia a dia desses grupos. Então, de forma política, mas ao mesmo tempo divertida, foi no peito dolorido de um povo tentando transformar sua exclusão em união que surgiu a cultura do ballroom.
Foram nos subúrbios nova-iorquinos que, pela primeira vez, pessoas trans, pretas, latinas e homossexuais tiveram sua existência celebrada em forma de dança. Aos poucos foi se estabelecendo um cenário constituído por regras, estilos e características tão ricas e próprias que até hoje fazem parte desses bailes.
Conhecer a cultura do ballroom é ser apresentado às Casas, formadas por grupos tão unidos quanto uma família de sangue pode ser. É conhecer o voguing, popularizado por Madonna em 1990 quando lançou Vogue, o catwalk, as categorias, as gírias e tudo que constrói esse universo gigante.
Gerações se passaram e o ballroom resistiu. Celebrando a livre expressão e ainda servindo como grande acolhimento, por todo o mundo, Casas ainda disputam entre si por dinheiro, reconhecimento e, é claro, muita diversão. Então, para os que querem se exibir aos olhos de milhares de pessoas e jurados especialistas, Legendary nasceu.
Recém-chegada no Brasil, a plataforma do HBO Max trouxe em seu catálogo as duas primeiras temporadas do reality apresentado pelo cativante Dashaun Wesley. Gravado no mundo pré-pandemia, os primeiros episódios contam com um público tão carismático que formava um personagem por si só. Mas, por conta das medidas de segurança e saúde tomadas, a segunda temporada de Legendary veio mais sozinha.
Quem não abandonou o show foram os – quase sempre – queridinhos jurados. Jameela Jamil, atriz da famosa sitcom The Good Place, e Megan Thee Stallion, cantora colecionadora de Grammys, se juntam ao grupo mais caloroso. Ambas não desperdiçam suas plaquinhas de nota 10 para enaltecer as casas.
Por outro lado, Leiomy Maldonado, grande nome no Vogue, e Law Roach, estilista de artistas como Zendaya e Ariana Grande, são mais difíceis de agradar. Os dois não escondem o descontentamento quando uma apresentação não os agrada. E, sinceramente, receber uma nota máxima do Law é tão difícil quanto as provas de Física do ITA.
Além dos rostos de sempre, cada programa conta também com a participação de diferentes celebridades que são convidadas para assistir e julgar as apresentações. Normani, Demi Lovato e outros famosos se juntaram ao cast e trouxeram ainda mais avaliações técnicas, além de muita risada, para a temporada dois.
Diferente da temporada inicial, a segunda volta mais organizada. O método de avaliação agora é baseado na soma das notas que as Casas recebem. Com uma apresentação em grupo e outras que são feitas individualmente, em dupla ou trio, as notas mais altas definem que Casas serão salvas, e quais vão precisar batalhar uma última vez para permanecer na corrida pelo prêmio de 100 mil dólares.
Outro ponto a ser analisado sobre os jurados são as maquiagens e vestimentas usadas. Seguindo a proposta da semana, os looks usados são de tirar o fôlego. As ideias devem partir das Casas, e serem construídas com a equipe liderada pelo figurinista Johnny Wujek, talentosíssimo artista que já trabalhou com grandes figuras como Katy Perry e Mariah Carey.
Todo esforço por trás do vestuário dos participantes rendeu duas indicações ao Emmy 2021. A HBO (com auxílio do catálogo do HBO Max) se tornou a plataforma com o maior número de indicações do ano, ultrapassando a recordista Netflix. Na sua longa lista de categorias estão Melhor Penteado Contemporâneo em Reality ou Programa de Variedades ou Programa de Não-Ficção e Melhor Maquiagem Contemporânea em Reality ou Programa de Variedades ou Programa de Não-Ficção (Não-Prostética), onde Legendary concorre pelo episódio Pop Tart.
Nos dois episódios iniciais, foram apresentadas as 10 Casas que entraram na competição: Miyake-Mugler, Balenciaga, Comme des Garçon, Oricci, Icon, Milan, Luxe, Prodigy e Chanel. Cada uma com suas singularidades, o palco era onde precisavam conquistar os jurados – e nos fazer se apaixonar por cada integrante.
Os primeiros a deixar a competição foram Chanel e Prodigy que, tadinhos, mal tiveram tempo de mostrar para o que vieram. Se tinham ou não potencial para chegar em uma possível final, é algo que nunca saberemos. Logo foram seguidos pela House of Milan que, na semana onde precisaram se apresentar como um dos Sete Pecados Capitais, foram expulsos do Céu como Adão e Eva.
O destaque da primeira metade da temporada não poderia ser outro além dela: Tisci. A Casa que foi uma das mais talentosas a passar pelo programa constantemente era favorita, graças ao esforço inesgotável da Mother Gia Tisci e seus filhos. Ao serem os primeiros a receberem 10 de todos os jurados, era impossível negar seu dom. É uma pena que a eliminação do grupo tenha sido tão dramática, graças a um bate-boca de um membro da casa e, sem surpresas, Law. Ai, ai, esse Law.
Com a saída dos icônicos, sobrou para o resto dividir os momentos de brilhar. Comme des Garçon realmente serviram muito bem, deixando os telespectadores bem alimentados. Mas como ninguém escapa das batalhas, se despediram na reta final. No episódio onde tiveram que apresentar três dos elementos do Vogue (hair whips, spins and dips, e floor performance), perderam para a Balenciaga, ficando em terceiro lugar. A derrota foi triste, mas quando Honey está do outro lado, tem como não esperar que ela vença?
A grande final foi composta, além da Casa que se salvou no penúltimo programa, pela House of Miyake-Mugler. A equipe que iniciou o programa tão mal, teve a maior das evoluções. Passando pela quase-eliminação, os membros tiveram a força que precisavam para dar a volta por cima e se tornarem lendários. Ganhando os últimos Bailes, foi com um prêmio de 100 mil dólares que a Casa finalizou a competição, além da felicidade contagiante.
A produção ficou na mão de David Collins, Rob Eric e Michael Williams. O trio também responsável por Queer Eye já ganhou o Emmy pelo programa da plataforma vizinha, a Netflix. Juntos construíram Legendary de forma tão convidativa que dá para se perder nos capítulos e fingir, por um tempo, que estamos dentro dos calorosos balls.
Entre todas as reviravoltas, discussões e muita dança, o que continua mais marcando cada episódio são as mensagens transmitidas nas performances. Na disputa de corpos, quando todos os tamanhos são valorizados e apreciados, o que ganha é a confiança. Nas batalhas, após o duelo os oponentes se abraçam, o que se destaca é o respeito. Antes de adversários, cada membro de cada grupo é parte de algo maior.
No meio dos treinos e apresentações, muitas histórias de vida são compartilhadas. Prostituição, racismo, transfobia, abandono, e tantos tipos de violência são traumas coletivos pela comunidade em um todo. Fazer parte do ballroom, então, é escapar da triste realidade de onde muitos vem.
Em sua última performance, a Casa Balenciaga encantou ao subir no palco cobertos de rosa e dourado para falarem sobre amor. Love is the message, comenta Mother Shannon no seu discurso final. E ao acabar de assistir o décimo episódio, Ballroom 5000, ficamos com o resto do amor derramado pelas Casas em nossos corações.
Já renovada para uma terceira temporada, o seriado ainda promete continuar trazendo a cena do ballroom para dentro de nossas casas. Te fazendo rir com os shades trocados pelas Casas, te fazendo chorar com os emocionantes relatos dos participantes, te fazendo ter raiva ocasionalmente dos jurados e te deixando com muita, mas muita vontade de sair dançando por aí, a segunda temporada de Legendary fez o que precisava ser feito.