Isabella Siqueira
Apesar dos ares de preconceito que rodeiam o novo livro de Kazuo Ishiguro, é preciso olhar para Klara e o Sol com a mente aberta. O célebre autor, vencedor do Nobel de Literatura em 2017, lançou neste ano seu oitavo romance, que chegou ao Brasil pela editora Companhia das Letras. O escritor, que muitas vezes teve seu mérito questionado, desenvolve uma trama que é pobre quando se pesa apenas a qualidade da ficção científica, mas satisfatória quando observada através da lente sentimental.
Após a consagração do cantor americano Bob Dylan, que ganhou o Nobel um ano antes de Ishiguro, o escritor britânico foi visto somente como uma opção segura depois da escolha polêmica. Mas, para julgar com clareza sua nova obra, é necessário esquecer qualquer questionamento sobre a qualidade de sua obra. E, mesmo que tenha sido referenciado pela crítica como um livro indigno de um ganhador do maior prêmio de literatura, Klara e o Sol é um bom romance sobre a complexidade das emoções humanas e de suas criações tecnológicas.
Klara, uma espécie de robô humanoide, é uma AA (Amiga Artificial) que inicia a trama já demonstrando muita sensibilidade e percepção sobre tudo à sua volta, se destacando assim entre os outros AA’s. A obra, que é dividida em cinco partes, começa numa loja onde a personagem se encontra observando atentamente o Sol, essa relação especial é referenciada ao longo da história, ficando claro que apesar da inteligência superior, ela tem ideias ingênuas sobre as propriedades da estrela.
Esse começo serve apenas para situar o jeito de pensar e as características de Klara. Em nenhum momento o autor explicita quais são as condições em que ela foi criada, todo esse universo decadente é deixado às sombras. Mas, tudo bem, já que o real sentido da narrativa de Ishiguro não é desenvolver um Duna da vida, e sim voltar com os temas em comuns de suas outras obras, como Vestígios do Dia e Não Me Abandone Jamais. A praia do autor é na verdade falar sobre sentimentos, seja na véspera da Segunda Guerra ou num futuro onde a tecnologia controla o DNA das pessoas.
É nessa premissa absurda que uma robô como Klara se fez tão precisa no futuro triste de Ishiguro. Crianças superiores e solitárias são o único fruto de um mundo onde é possível modificar a genética ao gosto dos humanos. Um Amigo Artificial não passa de uma companhia cara e de alta tecnologia, são máquinas criadas para ensinar, ajudar e curar a solidão de jovens modificados. Mas, apesar de ser exaltada apenas pela sua evolução, semelhante a um celular de última geração, a protagonista da história é tão empática e justa quanto uma pessoa real, e por sua personalidade sensível é fácil gostar de Klara e desgostar dos que a rodeiam.
Infelizmente, o autor desenvolve apenas Klara, e os demais personagens não passam de um apoio para as reflexões da AA. Após ser escolhida como companhia de Josie, uma pré-adolescente com problemas médicos misteriosos, a protagonista se envolve em complexas relações que não encontram suas expectativas dos tempos em que estava na loja. Sua única outra relação que é um pouco mais profunda é com a Mãe e Rick, amigo e namoradinho da infância da menina.
O interesse da protagonista pelas relações que acontecem à sua volta, Josie com sua mãe e Rick, é o assunto principal da trama, que não descreve muito a tecnologia envolvida, mas sim suas consequências diretas. Com muita sutileza, Ishiguro dá pistas sobre a real entrada de Klara na família, e todas as possibilidades que sua personalidade perceptiva oferecem num mundo onde as relações são rasas e descartáveis. Mas, o que o autor deixa claro é que, apesar do esforço e sucesso da personagem em demonstrar emoções apesar de seu corpo artificial, existe algo de único em cada ser humano, e que jamais será substituível.
Mesmo que o autor cite constantemente que a forma de Klara ver o mundo, é completamente diferente da de um Transeunte, já que ela coloca tudo em caixinhas como se fosse o processamento de uma imagem, é essa visão única que dá à personagem certa ingenuidade. Com o passar do livro, ela cria uma tese de que o Sol é capaz de poderes absurdos e curativos, visto que enxerga os acontecimentos sem tanta lógica quanto deveria. E, mesmo que a base dela esteja correta, pois o Sol é a fonte de energia de todas as coisas vivas, tal obsessão a faz imaginar que o astro é capaz do impossível.
Ainda sobre o universo não explorado de Ishiguro, o sistema de classes em vigor é interessante, mas simplista até demais. A divisão criada entre as crianças levantadas, termo usado para os bebês que foram modificados geneticamente, e as que os pais não tiveram a coragem de impor tais mudanças é explorada no contexto de riqueza e pobreza. Fica claro que a desvantagem social dos jovens que foram levantados é compensada por ganhos financeiros, oportunidades e uma vida sem preconceito. Apesar da ideia ser um tanto básica, funciona para o contexto da obra, que não aprofunda esse sistema injusto de divisão baseado em uma escolha drástica feita no nascimento de cada indivíduo.
A premissa de Klara e o Sol é vaga, assim como o futuro que o autor nipo-britânico propõe. Mas, observando sem preconceitos anteriores, o livro não merece críticas exageradas. Baseando-se em uma ideia onde qualquer relação ou comportamento pode ser facilmente reproduzido pela tecnologia, e de que não existe nada de especial sobre cada pessoa, Kazuo Ishiguro conduz com muita graça a trajetória de uma humanoide mais humana do que muitos por aí sonham em ser.