Apague a luz se for chorar: a (in)conformidade da existência

 A imagem tem um formato retangular com um plano de fundo azul. Podem ser vistos cinco exemplares do livro em posições aleatórias, ocupando grande parte da imagem. Atrás de todos os livros existe um sombreado em roxo. O livro possui uma cor base e de fundo alaranjado meio bege, com diversas imagens parecidas com galhos de árvore de cores, formatos e posições variadas. O título está centralizado e acima escrito em branco com letras maiúsculas e vazadas, enquanto o nome da autora está centralizado abaixo escrito em branco com letras maiúsculas e um pouco menores. No canto superior esquerdo está o logo do persona, um olho aberto com um triângulo ao invés da pupila e com uma cor vermelha. No canto inferior direito está o selo do time de leitores da Companhia das Letras, um selo azul, com uma circunferência branca no meio escrito em azul “time de leitores 2021” e dentro um círculo azul escrito “Companhia das Letras” em branco.
O romance é ambientado entre Brasília e Pirenópolis, cidadezinha no interior de Goiás (Foto: Caroline Campos)

Caroline Campos

O Persona é oficialmente um parceiro da Companhia das Letras – parte do Time de Leitores 2021. As resenhas dos livros selecionados sairão gradualmente, de acordo com o recebimento das obras. Em março, homenageando o mês da mulher, a obra escolhida para a parceria foi Apague a luz se for chorar, da goiana Fabiane Guimarães, que integra a #CompartilheLeiturasFemininas. O romance de estreia da autora é uma declaração de amor, cheia de afeto, às nuances da vida e aos vínculos familiares, mesmo os excepcionalmente desgastantes. 

Capítulo sim, capítulo não, conhecemos os capitães do barco: Cecília, que acaba de perder os pais ao mesmo tempo, e João, pai de um menino com paralisia cerebral. A narrativa de Cecília é contada por ela mesma, em primeira pessoa. A jovem veterinária que não acreditava em Deus, odiava música sertaneja, não dançava forró, estava desempregada e era vegetariana é uma confusão intensa de sentimentos e paranoias, o ponto crucial que engata o livro de Guimarães – ela acredita que seus pais foram assassinados com base unicamente em suas convicções.

Se de início achamos as teorias mirabolantes de Cecília engraçadas e malucas, não demora muito para sermos contagiados. Alguma coisa com certeza aconteceu. Na sua cabeça, a personagem vai encontrando provas cada vez mais confiáveis e certeiras, levando o mero leitor a acompanhá-la na acusação. A situação fica insustentável quando Caio, seu meio-irmão renegado por anos, aparece. Agora, Cecília encontrou seu assassino. Só faltam, bem, as provas.

A foto é retangular e centraliza a autora Fabiane Guimarães. Fabiane é uma mulher de 30 anos com cabelo crespo e castanhos, com as pontas mais claras. Ela usa uma blusa e um blazer brancos e uma calça rosé. Ela está com as pernas cruzadas e uma mão apoiada no joelho. Ela está sentada em um banco de concreto amarelo, olhando diretamente para a câmera. Ao fundo, o cenário é bege, paredes e piso. No canto direito, há o início de uma parede branca com padrões azuis.
Fabiane Guimarães, também jornalista, é uma aposta fora do eixo Rio-São Paulo para se ficar de olho (Foto: Reprodução)

Enquanto o arco da jovem é obsessivo e investigativo, a história de João pende mais para uma melancolia extrema. Seu filho Adam foi fruto de uma traição – a esposa o abandonou e, logo depois, foi a vez da mãe do garoto. O homem, também veterinário, passou muito tempo sem se conectar com o filho, se recusando a aceitar a responsabilidade que estava no seu colo. Até que, finalmente, percebeu: Adam tinha alma. Ele estava lá. Podia ver a ternura nos olhos da criança, que correspondia ao afeto do pai do jeito que conseguia. 

E assim, João passou a dedicar todos os seus esforços para encontrar um jeito de curar o garoto. O foco era um tratamento experimental chinês que custava os cem mil reais que ele (ainda) não tinha. João é bruto, perdido em mágoas e culpas, evitando pensar em arrependimentos. Diferente de Cecília, sua jornada é contada em terceira pessoa, como se não pudéssemos nos aproximar demais de sua vida conturbada e arisca. Os dilemas éticos que o veterinário enfrenta perpassam pelo começo, meio e fim das 175 páginas escritas por Fabiane Guimarães.

Publicado sob o selo Alfaguara, Apague a luz se for chorar caminha ferozmente até o entrelaçamento das duas histórias. Certo momento até nos desprendemos de esperar uma conexão quando ela é, enfim, jogada cruamente na nossa cara. Ambas as histórias se apoiam na confusão emocional que é fazer parte de um núcleo familiar, cada uma abordando o luto a partir do jeito peculiar de quem o conta. O ritmo, cruel e revigorante, é o que você precisa para ser fisgado do poço da ressaca literária, contanto que esteja ciente das feridas profundas que a autora cutuca em seu desenrolar.

A imagem é quadrada e fotografa dois exemplares do livro Apague a luz se for chorar. O livro da direita está na frente, levemente virado para a esquerda. O título do livro possui uma fonte branca e vazada, e a capa é alaranjada com desenhos de galhos coloridos. O livro da esquerda está mais para trás, virado para a direita. Eles estão de pé em uma mesa branca e a parede ao fundo é laranja.
O livro foi publicado no dia 12 de fevereiro de 2021 pela Companhia das Letras (Foto: Reprodução)

O sofrimento vicia, principalmente quando o usamos como muleta para evitar seguir em frente. Cecília tinha pais um pouco mais velhos que o restante, e isso a deixou com o pavor de perdê-los, com o pavor da data de validade. Esse medo a impediu de visualizar que a vida vale, sim, a pena de ser vivida, mas também de ser morrida. Afinal, como valorizar uma coisa se nunca irá perder? E no fim das contas, o encerramento de uma existência propiciou a tentativa do início de outra.  

A escrita sensível de Guimarães nos faz flutuar pelas questões mais primitivas que assombram a consciência humana. As justificativas contraditórias que embalam a parte final da obra só deixam em evidência o quão despreparados nós estamos para reaprender a viver sem alguém querido. A gente carrega conosco as pessoas, mesmo as mortas, mesmo as desconhecidas. Para Raul e Margarete, o percurso não importava se fosse acompanhado de quem se ama. Quem ficou para trás que siga em frente, chorando e sorrindo pelos que rumaram ao desconhecido.

Enquanto João e Adam se aventuram em um novo capítulo internacional, Cecília apenas… segue em frente. Do jeito que é para ser. Arriscando e construindo e superando. Apague a luz se for chorar é sobre os pequenos passos, que podem resultar em quedas grandes e subidas ainda maiores. Fabiane Guimarães brinca com a nossa imaginação e entende a impotência humana diante da finitude da vida, aprofundando seus personagens na medida certa. Para o livro, não há dúvidas: se for chorar, que seja na luz clara e corajosa do dia.

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