Bruno Alvarenga
Alejandra Ghersi Rodriguez moldou sua carreira como Arca de forma selvagem e extrema. Seu estilo característico envolve texturas eletrônicas distorcidas projetadas para engolir e incomodar, além de visuais igualmente extravagantes, cuja temática mistura tecnologia e androginia de forma majestosa. Mesmo antes de dar à luz ao seu primeiro trabalho de estúdio, o disforme Xen (2014), a cantora, compositora e produtora de Caracas já vinha dominando seu território com outras composições autorais, além de parcerias com grandes nomes da indústria musical, como Kanye West, FKA twigs, Björk e Kelela.
No entanto, de maneira surpreendente, após o lançamento de KiCk i (XL Recordings, 2020), álbum que contou com as parcerias de SOPHIE, Shygirl, ROSALÍA e novamente Björk, Arca revelou o lançamento de outros quatro álbuns, completando o grandioso Kick. O projeto completo foi concebido como uma quebra explosiva contra a categorização e uma formulação artística da existência não-binária. Em KICK ii (XL, 2021), segundo capítulo da série, Arca segue o caminho a partir do seu álbum anterior.
A faixa de abertura, Doña, demonstra uma combinação abstrata e caótica entre misteriosos vocais sintetizados e sussurros em loop com uma majestosa manipulação de abstratos ruídos eletrônicos. Sobreposições totalmente irregulares, carregadas de texturas sujas, intencionalmente desordenadas e cortantes, criam uma atmosfera que poderia ter saído diretamente de um jogo de Resident Evil: “Olá a todos/Para quem isso possa ser de interesse/É hora de entrar no fim/Escondido em uma caixa por esses outros”. Arca dá o tom com essa sonoridade familiar, que, no entanto, logo é quebrada pelo embalo hipnótico das próximas músicas.
Em Prada, Ghersi se aproxima novamente com a cultura latina, evidenciando uma combinação única e criativa de cúmbia e reggaeton, como uma clara extensão da proposta vista em KLK, parceria com ROSALÍA; e Mequetrefe, ambas do álbum KiCk i. Através dos versos e do distinto tratamento dos vocais, a canção revela um grito de liberdade sexual e desejo, dominância e submissão, junto à quebra dos papéis de gênero, como é notável no trecho “Eu te dou/Então você me dá, a/Por trás, ei”.
Lançada conjuntamente com a faixa anterior, como um single que revelou os incríveis visuais e estética propostos para essa nova era, Rakata revive de forma contagiante o instrumental apresentado anteriormente em KLK, e Arca também. Cheio de energia sedutora e impulsiva, a música, que revive versos de sua unreleased Furruco, revela um magnetismo natural em relação à normalização do ato sexual sem constrangimentos e barreiras, com um final festivo que soa como brasas ardendo.
Em parceria com o produtor alemão Boys Noize e o DJ e produtor venezuelano CardoPusher, Tiro revela um estrondo deliciosamente caótico que navega em melodias explosivas – que remetem ao trance dos anos 90 – em contraste com vocais ardentes e dispersos, em que artista venezuelana desfia a geografia de seu país de origem de forma singular e atraente. A faixa também encerra a tríade de abertura do álbum que desconstrói e experimenta a energia sedutora do reggaeton: “Dá uma loucura, dá uma loucura/Chupa essa pepa como um mango bajito/Dá devagarinho, então você acelera/Quebra esse quadril/Ah, que divertido!/Até os ossos colidirem”.
Com Luna Llena, Arca apresenta uma melódica inversão do som desconstruído anteriormente, através de uma linda e potente performance vocal. A música possui uma carga dramática e emocional que remete à bela melancolia presente em seu homônimo de 2017. Conduzida de forma mais lenta com ritmos que flutuam em uma atmosfera sonhadora, a faixa é um destaque específico e está entre as músicas mais potentes da carreira de Ghersi até hoje. Ademais, Luna Llena pode também ser vista como uma homenagem e referência a sua amiga e colaboradora escocesa SOPHIE, falecida em 2021 após sofrer uma queda enquanto apreciava a vista da lua cheia.
Lethargy quebra o ritmo e conduz o ouvinte à segunda metade do álbum. Com batidas que exploram graves profundos mesclados com melodias de piano de forma lenta e abafada, a faixa revela uma maior profundidade sonora com vocais processados e samples de respirações ofegantes e claustrofóbicas. Após Arca consolidar a obra em um formato consistente, a partir de Araña o álbum se desmancha intencionalmente em mutações. Com instrumentais irregulares e batidas sombrias, é retomada a energia obscura anunciada pela faixa de abertura, Doña.
As influências de seus EPs anteriores Stretch 1 & 2 (UNO, 2012) são nostálgicas e descontroladamente construídas a partir de um ritmo duro e instável, que se contorce, balança e desliza sem controle como as pernas de uma aranha enquanto come e suga os líquidos de sua presa, como evidenciado em “E vire, volte, e toque”. A seção final apresenta um a capella, com um misto de vozes e entonações profundas e emotivas, formando um coro personificado das múltiplas personalidades de Arca ao longo de sua carreira e evolução como artista, seguido de uma explosão final.
A faixa seguinte, Femme, contribui ainda mais para a construção da abordagem sombria do restante do álbum, com batidas opressivas muito similares a sua mixtape de estreia &&&&& (XL, 2013). Muñecas, parceria com Mica Levi, mostra como a artista venezuelana constrói sua essência puramente experimental na Música. Lentamente, a faixa se molda com melodias submersas que mesclam vozes sobrepostas e letra cíclica, como uma oração: “Todas as minhas bonecas”.
Em Confianza, combinando vocais distorcidos e melancólicos com um turbilhão de inquietantes sons de piano, Arca demonstra mais uma vez a singularidade que é capaz de proporcionar em cada música ao abordar intimidade e vulnerabilidade de forma anárquica. Os últimos 30 segundos da faixa soam como um angelical e satisfatório fechamento para o set, mas, logo em seguida, o desconforto crescente da segunda metade do álbum se dissolve em Born Yesterday.
Feita para grudar na cabeça, a faixa traz os vocais poderosos e melódicos de Sia para demonstrar amor, infidelidade e conflitos internos, com um toque pulsante de piano e misteriosos sintetizadores, marca registrada da artista venezuelana. O primeiro single lançado para o KICK ii era, na verdade, uma faixa demo de 2013, escrita por Sia para Katy Perry, e que integraria seu álbum Prism. A canção acabou sendo descartada, até cair nas mãos de Arca.
Definitivamente, Born Yesterday não era o que os fãs esperavam de Ghersi, porém os retalhos instrumentais e poéticos se encaixam ao propósito profundamente pessoal da obra. A artista demonstra mais uma vez a capacidade de transitar entre estilos musicais de forma sempre imprevisível, mesmo que anticlimática. Por fim, Andro retoma e se encaixa à atmosfera crua da faixa inicial, com sintetizadores subterrâneos e um embalo absorvente que conduz o ouvinte ao espetáculo final do set.
Arca, uma verdadeira Diva Experimental, segue um caminho tortuoso ao dar continuidade ao seu Kick primogênito, e novamente nos leva a mergulhar numa viagem de texturas sonoras ríspidas dentro de seu complexo mundo. Adentrando esse universo de possibilidades, a artista utiliza seus próprios sentimentos como principal componente conceitual. As canções discutem vivência queer, sexualidade, gênero e ancestralidade com uma ternura sensível e particular, que apesar de sedutora e “acessível”, talvez não atraia ouvintes não familiarizados com seu estilo único.
Em KICK ii, Ghersi se lambuza ao experimentar novas possibilidades e brinca com ritmos, como evidenciado nas faixas de abertura do álbum – Prada, Rakata e Tiro –, em que ela estreita sua relação com suas raízes latinas de forma mais profunda. Ainda assim, enquanto a primeira metade do CD encanta e surpreende pela imensidão de ideias e domínio criativo impecável da artista, conforme se aproxima da conclusão, especialmente após Araña, as músicas soam arranjadas de maneira irregular e encaixadas como possível material não entregue no álbum anterior.