Ma Ferreira
“Um distintivo assusta mais que uma arma”. Na Chicago de 1968, conhecemos um futuro Messias que, se apoiando em ombros de gigantes, sabe bem qual seu real inimigo e como atingi-lo. Enquanto esse Messias organiza seu rebanho, ele cresce como alvo principal do FBI, que angaria um ladrão de carros para ser seu delator e algoz. Essa é a premissa de Judas e o Messias Negro, longa que expõe problemáticas raciais da sociedade norte-americana, e que é protagonizado por Daniel Kaluuya e Lakeith Stanfield com a direção de Shaka King.
O roteiro é baseado em uma história real de traição. William (Bill) O’Neal serviu como um agente infiltrado dentro dos Panteras Negras para delação dos passos de Fred Hampton, culminando no assassinato deste. O filme é uma excelente proposta de reflexão sobre a moral, preconceito racial e estruturas de poder, sendo tanto um verdadeiro guia de militância, quanto de análise das posturas, atitudes e investimentos realizados por Hampton. Não à toa, Judas e o Messias Negro já rendeu algumas indicações e prêmiosa Daniel Kaluuya como Melhor Ator Codjuvante (vencedor do Globo de Ouro e do Critics Choice Awards e indicado ao Oscar 2021).
A direção de Shaka King acerta ao mesclar imagens reais junto às dramatizadas, conseguindo que o espectador se envolva, entendendo o quão dolorosa é a luta e trajetória de Hampton. Os recortes das imagens da entrevista de Bill, as mudanças nas posturas de Fred que afetam as atuações do Panteras, e os momentos de conflitos internos dos protagonistas sempre são precedidos por um estridente som musical que os demarca, como se fossem capítulos na evolução da narrativa e se tornando mais fortes perto do desfecho da mesma.
“Eu sou a revolução!”. Um dos presentes na vida de Hampton é a sua camarada Deborah Johnson, interpretada por Dominique Fishback (atriz de Project Power, da Netflix). É com a personagem que Hampton repensa seu discurso de mais radical para algo mais acolhedor. Deborah trás leveza, emoção, uma visão mais humana da narrativa. Sua gravidez também nos faz questionar o quanto os corpos são políticos, eles são armas, mas também são, em essência, pessoas. Ela carrega em si a esperança de outros dias de luta, não só por gestar o filho do Messias, mas por continuar engajada nos Panteras Negras mesmo depois do assassinato de seu companheiro.
Kaluuya cresce com este personagem. Ele é intenso, doloroso, revoltado, de fato um revolucionário, de fato uma ameaça ao FBI quando consegue unir gangues, até mesmo de extremistas brancos sulistas, contra as repressões policiais. O ator que se consagrou com Corra! e fez o mais recente soco no estômago Queen & Slim, tem o ápice de suas atuações neste papel, merecendo destaque suas cenas pós-prisão, onde a vontade de lutar, as características de pertencimento e de crença nas pessoas se fazem maiores do que qualquer medo de repressão/opressão policial e sistêmica.
Lakeith Stanfield também brilha em seu papel, ele traz um alívio cômico às situações que se coloca, mas ao mesmo tempo é um personagem que se vê em constante conflito. Seu papel tinha tudo para transformar o filme em mais um longa de agente infiltrado envolto em questões raciais, como Infiltrado na Klan, mas foge disso ao ser questionador em suas conversas com o agente Roy Mitchell (Jesse Plemons) e sofrer com suas próprias atitudes.
“Está virando um Pantera”. Bill, o selvagem, infelizmente é corrompido por um sistema e é usado apenas como mais um peão para aniquilar o Rei. A todo momento vemos o personagem de Lakeith, um dos principais atores da série de Atlanta, oscilar. O conflito vem da sensação de pertencimento que encontra nos Panteras e seus discursos e o seguimento dos planos do FBI. Destacam-se aqui as cenas de reconstituição da sede dos Panteras, o questionamento de Bill a Roy quanto a necessidade da morte de Hampton e a última bebida que Judas oferece ao Messias.
Elas mostram de maneira sensível, crítica e fulminante os conflitos internos de um personagem extremamente intrigante no histórico interno dos Panteras Negras. As imagens inseridas no longa, de uma entrevista real com William O’Neal mostram o quanto a atuação de Lakeith é grandiosa por se aproximar das posturas de uma personalidade verdadeira. Judas and the Black Messiah também mostra como o ator é versátil ao ser muitas vezes lembrado por produções em que ataca o racismo de forma ácida, irônica e até debochada, mas que neste longa apresenta uma face, na maior parte das vezes, séria e dramática.
O filme com toda a certeza merece as nomeações e prêmios que vem recebendo, incluindo as do Oscar como Melhor Filme, Ator Coadjuvante (indicação dupla para Daniel Kaluuya e Lakeith Stanfield), Roteiro Original, dos irmãos Kenny Lucas e Keith Lucas junto a Shaka King e Will Berson, e a Fotografia, de Sean Bobbit, vencedor do Spirit Awards por seu trabalho em 12 Anos de Escravidão.
É um dos concorrentes que já atende às propostas de acolhimento à diversidade nas produções para que estas possam concorrer à premiação. Sua produção é essencialmente composta de pessoas negras (Ryan Coogler, diretor de Pantera Negra, Charles D. King, de Sorry to Bother You e Shaka King) e o seu elenco é repleto de atores engajados em produções que mostram da melhor e mais pungente forma as opressões e os absurdos do racismo.
Mesmo que ele não leve nenhuma estatueta, Judas e o Messias Negro já é uma ótima indicação de longa que retrata de forma densa e bem colocada as questões raciais e de direitos humanos, bem como expõe as atuais problemáticas do racismo no país. É de fato um filme sobre um agente infiltrado, que desenvolve em real complexidade os processos pelos quais Hampton e O’Neal passam para serem quem são e demonstra de maneira formidável o seu principal personagem e vilão, o racismo estrutural.