Vitor Evangelista
Sozinhos em um quarto escuro da noite paquistanesa e iluminados apenas pela luz neon em formato de flores e borboletas que beijam seus corpos, Haider (Ali Junejo) e Biba (Alina Khan) não conseguem encostar um no outro. A tensão que os envolve é forte demais para isso. Mas, quando o homem toma coragem e estica o braço a fim de pegar um copo d’água da mulher, uma faísca atravessa o ambiente, quebrando o vidro e, junto dos cacos, a barreira que existe entre ambos.
Essa é apenas uma pequena porção do que serve Joyland, filme presente na Competição Novos Diretores da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e representante do Paquistão no Oscar 2023. Primeira produção do país a integrar a seleção de Cannes, ele foi além das expectativas e venceu dois prêmios em terras francesas: o Grande Prêmio do Júri da seção Um Certo Olhar e a Palma Queer, destinada a obras que articulam temas e personagens LGBQIA+ com maestria.
O motivo é a inserção central de Madame Biba, uma dançarina trans que emprega Haider e, no caminho, invoca sua atenção romântica. Com o triunfo de trabalhar diversidade e representatividade queer dentro de uma cultura cinematográfica não muito interessada nos assuntos, o exitoso Joyland é apenas o 12º filme submetido pelo Paquistão ao Oscar. Para começar, o homem faz parte de um clã familiar majoritariamente feminino e o patriarca, um senhor de idade avançada e bons modos inexistentes, clama pelo nascimento de um menino para continuar a linhagem e o sobrenome para futuras gerações.
Haider é o irmão mais novo de Saleem (Sohail Sameer), que acaba de receber uma nova filhinha nos braços. Sem emprego e sustentado pela esposa Mumtaz (Rasti Farooq), o protagonista aceita a oportunidade de trabalhar num teatro de dança erótica. Para a família, ele mente dizendo que atuará como gerente do local, mas na verdade o cargo é de dançarino da fascinante Madame Biba, uma jovem artista que luta com unhas e dentes para conquistar seu local sob o holofote.
Marcando a estreia de Saim Sadiq no comando de longas, Joyland nasce com a premissa de liberar seus personagens para os diversos desejos que inundam seus corações. As faíscas emitidas por Biba e Haider são peixe pequeno perto da labareda que lambe as ruas abarrotadas de gente e poeira. Para além da dupla, o filme vai abrindo as fechaduras e derrubando os cadeados que pesam os braços e ombros dos demais, seja por meio do êxtase do corpo, da alma e até da morte.
Afinal, recusar uma vida que não te pertence é motivo suficiente para partir em busca de um novo horizonte. A terra da alegria que dá nome ao filme é visitada em formato de parque de diversões, local onde Mumtaz estuda as possibilidades do amanhã. Observando o luar fluorescente do bairro em que mora, a maquiadora passa a mão por sobre a barriga, onde carrega, com sorte, o menino que dará prosseguimento à linha de sangue que o sogro tanto martela na cabeça de todos com que divide o teto.
Enquanto isso, seu marido está buscando sua própria maneira de limpar a mente dos preceitos e opiniões do pai. Haider, que sempre se enxergou como alguém passivo a tudo que enfrenta (desde o papel de irmão mais novo de alguém “superior”, até viver às custas do salário da esposa em uma cultura que valoriza o homem como provedor), olha para Biba e vê o mar se abrir ao seu comando. Costumeiramente ácida e nem aí para o que os outros pensam, a personagem é interpretada como alguém resiliente e inquebrável.
O papel desempenhado por Alina Khan, que tem no currículo o protagonismo do curta anterior do diretor, é uma cebola de vulnerabilidade e autocontrole. Uma mulher trans vivendo em uma sociedade que, além de condenar sua existência, duvida de quem ela é, Madame Biba foi colocada na ação de ativa pelo mundo que a moldou, comandando seus dançarinos, o gerente do teatro e o coração de Haider, enamorado pela liberdade que ela depreende.
Tamanha é a paixão dele pela ideia de emancipação e auto suficiência que, na chegada dos finalmentes de Joyland, o diretor e roteirista Saim Sadiq abdica da figura de Madame Biba e, como o mundo em que vive, torna ela invisível, e liquidifica as ascensões sensoriais que ela e Haider lutaram para viver em harmonia. As liberdades do protagonista, colocadas em cheque a respeito do seu papel como homem, como comandante da família e como futuro pai, iluminam o centro do palco, sem espaço para que Biba, dona dos temas mais significativos da trama e regente do espetáculo, dance sem medo de quem assiste.