Andrezza Marques
O quinto álbum de estúdio de Felipe Desiderio, ou Febem (conhecido pelas rimas que têm o mesmo peso do apelido), foi lançado em 9 de abril de 2021. Agora, já tendo completado pouco mais de um mês de existência, caminha para ser considerado um dos melhores e mais genuínos trabalhos do hip-hop, rap e grime (ou Brime) atuais. O grime, que despontou no país com o rapper baiano Vandal de Verdade, e é a aposta principal de nomes como o próprio Febem (os dois artistas tem, inclusive, um feat), tem tudo para colocar o Brasil em evidência internacional. O lançamento de JOVEM OG é mais uma prova que o rap nacional passa por um ótimo período, e o cantor, com trabalho consistente, se mostra cada vez mais perto do mainstream pela qualidade técnica e lírica, sem deixar de lado a agressividade e essência crítica características do rap, bem distante das lovesongs e outros sons comerciais que eram febres em outros tempos e ainda seguem populares no país, como os hits sequenciais dos projetos Poetas no Topo e Poesia Acústica.
JOVEM OG explora as vivências da quebrada, com lírica ácida, flow seguro, de quem escreve certo por linhas tortas, e beats inusitados, ao mesmo tempo que são extremamente bem acabados e arranjados, passeando pelo grime, funk, boom bap, trap e indo além. Essa originalidade sonora se deve muito a CESRV (ou Cesinha), produtor do álbum e parceiro quase fixo, presente nos trabalhos mais recentes de Febem, Running (2019) e o colaborativo BRIME! (2020) – sendo o último, inclusive, aclamado pela crítica e por fãs.
Os versos, recheados de referências e metalinguagens, citam desde The Notorious B.I.G. e Racionais Mc’s até Poesia Acústica, Baco Exu do Blues, e a lista não para. O disco segue alinhado com os antecessores, além de permanecer coeso na própria proposta, com as dez faixas conversando entre si. Bem amarradas, e nada óbvias, elas parecem funcionar como narrativas relatadas por personagens distintos, ou, pelo menos, por diferentes fases da vida, no mesmo universo.
Não por acaso, o nome do álbum faz alusão à autenticidade e essência, com o O.G – Original Gangster, termo que nomeou o disco lançado por ICE-T, em 1991, considerado clássico da era de ouro do hip-hop (meados dos anos 80 e 90), e é também muito replicado no gangsta rap. Dois gêneros nascidos em comunidades afro-americanas, caribenhas e latinas nos EUA, e marcados pelo retrato da rotina de guerra, vivida em bairros dominados por gangues, como no sul de Chicago e na costa oeste da Califórnia.
Temas como o cancelamento virtual, a ostentação de quem está finalmente saindo das estatísticas, o dia a dia de violência nas favelas, além de fortes críticas ao estado e aos abusos policiais, estão presentes em todo o disco. O que não poderia ser diferente, já que Febem é fruto da realidade em que um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos, e precisa romper com esse ciclo com as armas que têm. No seu caso, a arte: “Se pá que era melhor ter feito um clipe de fuzil/ Pra estourar no Youtube com dez milhão de view/Nada contra/Progresso pra quem trampa/Mais uma arma no clipe é menos um menor na boca”, ele canta em MÉXICO.
Em JOVEM OG, Febem traz uma extensa lista de colaborações, como as gêmeas Tasha e Tracie, que, assim como ele, vêm diretamente da Zona Norte de SP, e estão se impondo cada vez mais na cena, com produções únicas e consistência, e o fenômeno mineiro Djonga, que, envolvido ou não em polêmicas, é o primeiro rapper do Brasil indicado ao BET Hip Hop Awards. Outros nomes de uma nova geração promissora de artistas como Jean Tassy, Vulgo FK e Kyan, também estão entre os convidados do álbum.
A intensidade, revolta e verossimilhança dos versos, mais a voz suave do rapper paulistano, são responsáveis por um jogo de contrastes. JOVEM faz a oposição decadência versus otimismo ficar em evidência nos trechos sobrepostos: “Nunca estive tão bem/Posso voar também/Dizem que Deus não dá asa a cobra/Mas de vez em quando ele resolve emprestar”, na voz melódica com o refrão cantado por Smile, e a voz robotizada, propositalmente distorcida do rapper.
Febem nunca esteve tão bem, é fato. Em 2016, o rapper deixou o grupo ZRM (Zero Real Marginal), onde já tinha um trabalho significativo, pelo selo Damassaclan, e, desde 2017, integra a CEIA Ent., coletivo que tem o papel social do rap como máxima. Criada por Don Cesão e Nicole Balestro, a CEIA une vários artistas num movimento que produz música, moda e influência, e conta com o patrocínio de marcas como a Adidas.
Em 2018, a CEIA lançou o EP Somos, composto por 6 faixas, além da bônus Troféu, disponíveis em todas as plataformas digitais. Nele, Febem estrela no clipe de sua música Bandida, contracenando com outros artistas do selo, como Tasha e Tracie. O projeto contou com a participação de todos os artistas do coletivo, como Pizzol, Djonga, e Clara Lima. Todas as composições também ganharam clipes no canal da CEIA no YouTube. O nome do primeiro projeto coletivo traz, inclusive, o que pode ser uma alusão ao patrocínio da Adidas, numa referência às 3 listras da marca, na grafia original: SO///OS.
Em JOVEM OG, nos videoclipes de CRIME, MÉXICO e VAI PENSANDO, Febem recria a mesma atmosfera de máfia e/ou quebrada e sigilo que domina o clipe do EP de 2018. As faixas que também mencionam os patrocínios não tem nenhuma participação nos vocais e são carregadas de referências ao próprio trabalho e à família de Febem – que menciona sua filha, irmão, mãe e avó em diversos momentos. Nos clipes, as três composições são continuações entre si, para promover o disco, além de funcionarem como encarte audiovisual, uma das apostas do selo.
Recheadas de punchline, MÉXICO e CRIME são também as canções que carregam o versos mais contraditórios do rapper no álbum, e foram até alvo de críticas: “Quebrada e crime é que nem vírus chinês/Tá todo mundo exposto e a vacina ninguém cria” e “Ela diz que adora levar tapa/Ela tem descendência da Europa/Pra eu não me sentir mal/Pensei reparação histórica”.
Os versos de Febem são, por vezes, propositalmente indigestos. Tanto é que o rapper chega a debochar disso nas letras, e consegue soar áspero e proeminente, mesmo com a voz baixa, bem longe do speed flow. O que pode ser encarado como provocação ao estilo de alguns colegas do selo antigo. Mesmo com as críticas, MÉXICO e CRIME trazem a drill music, subgênero do trap, inserções de áudios de WhatsApp ou de RADDIM e outros samples famosos ao fundo (marca registrada do BRIME! e de CESRV), junto a passagens totalmente inesperadas e inteligentes:
“E na vida algumas coisa é como um Golf GTI/
Não cura minha dor, mas mesmo assim vou adquirir”
– CRIME
A curtíssima SEM TEMPO, como o próprio nome sugere, tem a participação de Jean Tassy em menos de dois minutos de duração, e deixa a sensação de que poderia ter durado mais. O som mais comercial, assim como o dance-pop, da onírica e auto-tunada MARCHA, com Vulgo FK, fazem ambas soarem estranhas entre as mais agressivas e com grave bem marcado do resto do disco, mas acabam funcionando bem na sequência. Em JOVEM OG, Febem aproveita muito de palavras com duplo sentido e com a figuração e repetição de frases para construir coros pegajosos, o que poderia ser um exagero e cair na mesmice, se não fossem muito bem arranjadas.
Exemplo disso são CRIME, ME PAGA, com Djonga, e BALLA, produzida por MU540 e com participação de Kyan. Ao lado de ÁREA DE RISCO, com Tasha e Tracie, as quatro são donas dos refrões mais marcantes do JOVEM OG. Todas com inserções pesadas do funk e trap, tanto na letra, quanto nas batidas mais aceleradas, que por vezes remetem ao 140 e 150 BPM. BALLA sampleia trechos do som da Rave dos Fluxos, Passinho do Bota, produzido por DJ GBR e voz por Mc Lan, e chega a despertar memórias afetivas da época do clássico Baile de Favela, lançado por Mc João em 2016. Quem viveu, sabe.
O resgate da cultura brasileira de quebrada e para a quebrada, vindo de um cara da Vila Maria, na metrópole de contrastes que é São Paulo, acima das referências de outros países, é o acerto máximo do álbum. A principal proposta de CESRV e Febem, desde o CD colaborativo com Fleezus, o BRIME!, de 2020, é justamente essa. “No fim das contas foi um processo muito natural para nós. Só traduzimos a nossa realidade para dentro das músicas”, contou CESRV ao canal Rap TV.
O segundo grande acerto é a dinâmica das colaborações, onde os versos destaque são quase sempre das participações, como é também o caso da ácida ÁREA DE RISCO e da gozação de ME PAGA. Mesmo com a experimentação diversificada, o trabalho mantém sua personalidade e essência, e entrega um resultado extremamente original. “Sou bipolar, mas pentacampeão, jogando descalço, sem boot e meião/Na frente da tropa igual Tutancâmon/Referência pros preto pique Conceição Evaristo/Filho de Jesus Cristo, só fiz o que ‘tava previsto’”, canta Djonga em ME PAGA.
Em ÁREA DE RISCO, Tracie, com a dureza e assertividade costumeiras, denuncia: “Na Faria Lima foi pro Peri/Achou que ia pra Santa Cecília/Ele ficou em choque/Mó fita sabia que aqui o grave só não bate mais que a polícia”. Mesmo cantadas pelos convidados, as letras são uma amostra do trabalho de base, sem a ilusão na qual Febem acredita. Ao receber elogios pelo álbum inteiro, em entrevista ao PODPAH, o rapper é modesto e afirma que acabou de subir um degrau com o novo trabalho: “Eu acho que tá bom, eu evolui, é o que eu vivo na minha vida”.
Modéstia a parte, JOVEM OG é um trabalho pesado, preciso e afrontoso. A produção do álbum durou um ano, e narra de maneira cativante a trajetória marginalizada de quem está no corre e sempre correu a vida inteira: JOVEM, como faixa de abertura, e OG, que precede o encerramento com ME PAGA, traduzem a justaposição estratégica do discurso de quem cobra com razão por esse corre que ainda vai muito além do dinheiro.