Felipe Nunes
Como uma jovem golpista adentra os eventos e círculos sociais da mais alta elite nova-iorquina sem ter um sobrenome conhecido e nem mesmo um dólar no bolso? E como ela ainda consegue desembolsar empréstimos com quantias inimagináveis das instituições bancárias mais conservadoras dos Estados Unidos? São as respostas dessas indagações que a produção Inventando Anna traz. E embora pareçam casos irreais, essas situações estão longe de serem apenas um enredo ficcional. Esses acontecimentos realmente ocorreram e serviram como base para a minissérie jornalística, que traz situações tão surpreendentes que, de fato, parecem inventadas.
Lançada pela Netflix em parceria com a produtora Shondaland, a narrativa foi criada por Shonda Rhimes. Conhecida pela famigerada e perpétua Grey’s Anatomy e pelos dramas advocatícios e políticos de Scandal, Rhimes deixa sua marca, entregando episódios longos, instigantes e conectados entre si. Dessa vez, com uma trama oriunda de um artigo jornalístico que chocou Nova Iorque e o mundo ao expor a fraudulenta Anna Delvey, cujo próprio nome inventou. O artigo foi feito pela jornalista Jessica Presler, que já é conhecida por ter textos que se tornam filmes, já que isso aconteceu anteriormente com As Golpistas. Inclusive, Pressler foi alvo de inspiração para que Shonda criasse uma das protagonistas da minissérie: Vivian Kent (Anna Chlumsky).
O gancho central da história está em Anna (Julia Garner), que aparece no primeiro episódio sendo presa, segundo ela, por uma calúnia, pois atesta que é uma jovem rica e que não merece estar atrás das grades por contas que, ainda, não foram pagas. Não sabemos as reais intenções da garota, se realmente é uma herdeira alemã, como defende, ou se é uma golpista, como a mídia a intitula. Mas sabemos que a resposta desse mistério nos prenderá ao transcorrer de 9 longos episódios que esmiúçam a história de Inventando Anna.
Ao decorrer de cada episódio, a abertura da série é construída como um mosaico. Trechos, recortes e partes incompletas são unidos até que o rosto da personagem principal obtenha nitidez, como uma espécie de metáfora, em que cada parte do quebra-cabeça dessa longa trama é necessária para a compreensão total da história. E com certeza é! O mesmo vale para as informações iniciais de cada capítulo, que carregam a explicação: “Esta é uma história totalmente verídica. Exceto pelas partes que foram inventadas”. Esse excerto é um divertimento elucidativo, porque deixa claro o que vamos assistir em Inventando Anna: uma narrativa baseada em acontecimentos reais misturada com criações ficcionais da autora.
A dinâmica da série, ainda que focada na história de Delvey, também tem uma vertente extremamente interessante quando nos apresenta a personagem Vivian Kent, que, em diversas vezes, compartilha o protagonismo com Anna. Vivian cria um laço complicado e emaranhado com a personagem de Garner, isso graças ao seu anseio em contar a história da golpista que enganou toda Nova Iorque através de um artigo publicado na Manhattan Magazine – revista na qual trabalha. Esse anseio não é puramente genuíno. Muito pelo contrário. Ela quer contar essa história para sair do abismo em que caiu quando publicou um material com uma notícia falsa – o verdadeiro terror de Vivian e de qualquer outro jornalista.
No entanto, a trajetória não é nada fácil. Enfrentando o machismo de seu chefe e de seu editor, a jornalista cria uma jornada dupla de trabalho e ao invés de apurar as pautas que são dadas, ela decide usar seu tempo para ir ao presídio de Anna e averiguar como aquela garota foi capaz de manipular todos que a cercavam. Aqui, cabe ressaltar que a personagem não representa os ideais éticos jornalísticos. Ao visitar a personagem sem a tramitação legal necessária para profissionais da imprensa, Kent comete um grave erro, que está longe de ser o seu único.
Ainda nesse panorama, as visitas deixam de ser esporádicas e passam a ser frequentes. A relação e os limites entre a jornalista e a fonte se liquefazem. É complicado saber o que elas se tornam. O rótulo de amizade é forte demais para a convivência construída, mas “colegas” também não as representam fielmente. O fato é: Vivian está completamente envolvida com a história de Anna. Por vezes, é possível ver a personagem sentir pena e empatia da golpista, mesmo sabendo tudo o que ela pode ter cometido. E é nesse momento que os espectadores de Inventando Anna também se veem indecisos.
A cada encontro com Anna, Vivian descobre uma nova parte da história, mas de uma forma não tão cronológica quanto se espera. A linearidade da série é uma desordem. Passado e presente se misturam a todo momento, mas o que ajudou a diferenciar a história foi o visual da protagonista, que na maior parte de seu passado estava com cabelos loiros e no presente com fios castanhos. Contudo, essa desordem é proposital. Os fatos narrados apresentam diferenças e subjetividades de acordo com quem os conta e é isso o que Shonda quer nos mostrar. As vítimas da golpista trazem uma perspectiva; as amigas, outra; e Delvey, é claro, também apresenta uma visão, romantizada e eufemizada, totalmente diferente das acusações que sofrera.
Nessa teia de discordâncias, a história de Inventando Anna ganha sentido à medida que Vivian apura as informações apresentadas e descobre quais são verdadeiras. Com a ajuda de Todd (Arian Moayed), advogado da golpista, e tendo os relatos das pessoas que circundavam o círculo social de Anna, a jornalista compreende que ela é culpada por tudo que a acusam. A lista é gigantesca, mas vai desde fraudes bancárias até o uso de jatinhos particulares e hospedagens em hotéis de luxo sem pagamento. As motivações de Anna para tantos golpes e mentiras eram uma: criar sua própria fundação artística em um dos prédios mais clássicos e luxuosos da cidade. Motivação essa que esteve muito perto de virar realidade se uma de suas melhores amigas, Rachel Williams (Katie Lowes), não armasse um plano com as viaturas policiais para a prenderem.
Ao mostrar a condenação de Anna Delvey, que, na verdade, se chamava Anna Sorokin, a minissérie encerra seus arcos mostrando a ascensão de Vivian com a publicação de seu artigo e a amizade que a jornalista criou com a golpista. Os desfechos são satisfatórios e mostram que a produção teve início, meio e fim bem construídos. E, embora tenha narrado os acontecimentos de uma forma confusa, Inventing Anna não falha em concluir todas as narrativas que foram trazidas nos capítulos iniciais. Mas isso não significa que as produções chegaram ao fim, pelo menos no que depender da HBO. Isso porque, segundo a Vogue Brasil, o canal pretende criar uma série, dessa vez com os pontos de vista da verdadeira Rachel Williams que inspirou a personagem na produção da Netflix.
O roteiro é muito bem construído. Todos os personagens possuem camadas profundas que são apresentadas a cada novo arco criado e isso graças a equipe de roteiristas formada por Shonda Rhimes, Carolyn Ingber, Nicholas Nardini, Abby Ajayi, Jess Brownell, Matt Byrne e Juan Carlos Fernandez. Igualmente, a equipe de direção composta por David Frankel, Ellen Kuras, Nzingha Stewart, Tom Verica e Daisy von Scherler Mayer merece reconhecimento, tendo em vista que a mediação entre o elenco e os roteiristas foi essencial para que os episódios mantivessem sua essência misteriosa e cativante.
Inventando Anna se consagra como um dos maiores acertos de Shonda Rhimes. Os estereótipos aplicados aos jornalistas não são nenhuma novidade no ramo cinematográfico, mas merecem atenção para que sejam alterados em futuras produções e, dessa forma, deixem de incentivar a visão infundada que grande parte da população tem sobre a ética dos jornalistas. Contudo, ainda assim, a produção consegue elevar a importância desses profissionais para a sociedade quando mostra Vivian desvendando todo o caso ao apurar, minuciosamente, todas as informações colhidas. Tratando sobre temas importantes, a minissérie biográfica cumpre o que promete a cada início de um novo episódio: a narração de uma história totalmente verídica – com exceção das partes que foram inventadas.