Caio Machado
A primeira divisão binária que um ser humano encontra ao chegar no mundo é a de gênero. Menino e menina. O primeiro brinca de carrinho, a segunda brinca de casinha. Um veste azul, outra usa rosa, como disse uma figura execrável em Brasília certa vez. Mas por que essa divisão existe? Quem foi que a criou? Deus ou o ser humano? São todos questionamentos que permeiam Hedwig: Rock, Amor e Traição (Hedwig and the Angry Inch), filme que quebra esse muro tão precário com ousadia, Música e revolta.
Na trama, acompanhamos Hedwig (John Cameron Mitchell), uma mulher transgênero que lidera uma banda de punk rock, a The Angry Inch. Enquanto percorrem os Estados Unidos, seguindo a turnê do astro Tommy Gnosis (Michael Pitt), temos um vislumbre do passado da protagonista, passando pela infância vivida na Berlim Oriental, sua cirurgia de redesignação de gênero forçada (e mal-sucedida) e a vinda aos EUA.
Assim como Todd Haynes fez em Velvet Goldmine, em Hedwig, o ator e diretor John Cameron Mitchell compreende a Música, especificamente o rock, como um meio de acolhimento para vidas queer. Em flashbacks carregados de delicadeza e humor, o filme mostra a importância que figuras importantes do gênero, como Lou Reed e Iggy Pop, tiveram na formação da protagonista e seu autodescobrimento. O sentimento de identificação com essas personalidades foi fundamental para que se aceitasse como alguém fora do padrão heteronormativo.
Através de uma cena curta, onde Hedwig ainda criança dança na cama enquanto “we are freaks” ecoa do rádio, o filme consegue demonstrar a melhor sensação que a Música é capaz de proporcionar: a de pertencimento. Sentir que você não está só no mundo e que aqueles versos, naquela melodia, estão conversando diretamente contigo. É um sentimento tão poderoso que devolve cor e força para vidas cinzentas e monótonas.
A própria vida de Hedwig não foi nada fácil. Desde a infância, o sofrimento e a decepção sempre se mantiveram presentes. Mesmo assim, ela colocava a peruca, passava a maquiagem e seguia em frente, com a cabeça em pé e liderando sua banda. Nenhum personagem precisa falar para ela o quanto é forte pois qualquer momento onde Hedwig canta já diz isso. Performa sempre com uma intensidade capaz de mover multidões, mas seu público é pequeno. O filme faz questão de ressaltar o quanto ela e a banda destoam do ambiente e de quem frequenta o lugar onde se apresentam, mas não entende isso como motivo para chacota. Pelo contrário, vê como símbolo de força, de resistência. Não só Hedwig, mas todos do grupo têm uma confiança que é muito inspiradora.
Esse espírito tão vibrante, tão corajoso permeia os 93 minutos da produção. Nela, as diferenças, sejam elas de aparência, comportamento ou o que for, são vistas como algo mágico. A magia, repleta de glitter, está presente tanto na vivacidade da fotografia quanto nas cenas onde a obra abraça seu lado fantasioso, como na inserção das letras de uma das músicas para que o espectador cante junto, igual a um karaokê, e nas animações, cheias de personalidade e que servem para ilustrar as canções e histórias de vida da protagonista.
Entre essas histórias, está o relacionamento conturbado com Tommy Gnosis. Há uma inocência muito bonita que acompanha as cenas no início da relação dos dois, onde o amor dela faz com que descubra mais sobre ele. À medida que Gnosis desbrava a própria sexualidade e não a aceita, o clima das interações entre os dois se torna profundamente melancólico e o filme se aproveita do drama gerado para ressaltar a ironia: é o que Tommy carrega no nome artístico, o conhecimento (gnosis), que causou a ruína de seu relacionamento com Hedwig. Mais uma vez, dor e decepção passaram pela vida da protagonista.
À medida que a narrativa avança, a cantora e a banda têm seu instante de fama. A própria montagem do filme fica mais frenética para acompanhar a maior atenção que o grupo passa a receber. O ambiente onde apresentam muda, o antigo amor de Hedwig retorna, desta vez para pedir desculpas pelo erro do passado. A linearidade da trama é abandonada e a obra toma para si o caos, cheio de guitarras raivosas e ruído de amplificadores, para representar outra metamorfose da protagonista.
Sem a peruca loira e sem roupas, a aceitação desta nova fase é chocante, mas também traz a liberdade. Agora, é um homem? Mulher? Nenhum dos dois e ambos. Definir sua existência nesses termos é muito simplista. De qualquer forma, continua caminhando. No Mês do Orgulho, sua história é uma incrível fonte de inspiração para todos que fazem parte da comunidade LGBTQIA+. É um incentivo maravilhoso para ser quem você é, sem medo, porque viver de acordo com as divisões que a sociedade impõe desde a infância só traz angústia. Somente abandonando esses “padrões” do século passado é que seremos livres de verdade.