Heartstopper, meu coração é que para por você!

Cena da série Heartstopper. Na imagem estão Nick Nelson e Charlie Spring. Nick é um homem branco de cabelos lisos e loiros, ele veste uma calça de moletom cinza, uma camiseta azul e um casaco marrom. Charlie é um homem birracial de cabelos ondulados e pretos, ele veste uma calça preta, camiseta azul, casaco preto e uma touca marrom. Os dois estão deitados na neve. A cachorra Nelie está entre os dois, ela tem pelagem marrom e branca. Bolas de neve ilustradas aparecem nas bordas da imagem.
Com um quê de conto de fadas, Heartstopper foi lançada pela Netflix em Agosto de 2022 (Foto: Netflix)

Jamily Rigonatto

Uma caneta estoura manchando as mãos de um garoto, o tom de azul cintila e deixa no ar aquela típica reação envergonhada acompanhada de um sorrisinho de canto. É essa a cena que dá o tom de toda a narrativa carregada por Heartstopper: coisas sobre as quais não se tem controle e deixam marcas difíceis de tirar. O garoto é Nick Nelson, interesse romântico de Charlie Spring, e os dois formam o tipo de casal que nunca daria certo. Um jogador de rugby popular e um jovem doce e sensível? Impossível. Mas na 1ª temporada da série lançada em 2022 pela Netflix, o inesperado é dono de um protagonismo apaixonante. 

Contrariando a maior parte das narrativas LGBTQIA+ do mercado, a obra – inspirada nas HQs de Alice Oseman – escolhe retratar os conflitos com a sexualidade e os momentos de autodescoberta com a leveza de uma brisa que carrega as folhas soltas no outono. Não é como se os enredos que deixam a violência e as retaliações em foco estejam errados – infelizmente, eles são muito fidedignos. No entanto, a produção nos guia por outro caminho; um em que jovens queer têm o direito de sonhar com um romance clichê na adolescência.     

Os meninos estudam juntos no colégio de Truham, onde apenas garotos podem se matricular. Charlie (Joe Locke) teve sua sexualidade exposta um tempo antes para toda a escola e vive com as inseguranças que o bullying garantiu que fizessem parte de sua vida. Enquanto isso, Nick (Kit Connor) é o tipo popular que na verdade nunca estabeleceu laços verdadeiramente sinceros. Talvez essas palavras transmitam um sentimento contrário ao de imprevisibilidade, já que é o tipo de fórmula usada em filmes há muito tempo. No entanto, quando se trata de um espaço distante da heteronormatividade, até mesmo as receitas prontas ganham uma infinidade de sabores novos.        

Por puro acaso do destino, os personagens são colocados para sentar juntos durante uma das aulas e, de maneira rápida e silenciosa, seus cumprimentos passam a ser cada vez mais sinceros e conectados. Desde essas interações, fica no ar como o ato de sentir chega com suavidade e sem segundas intenções. Até mesmo as inseguranças e medos repousam sobre uma ideia de intimismo e prioridade pautada em primeiro lugar pela conexão com o próprio ser. 

Cena da série Heartstopper. Na imagem estão Nick Nelson e Charlie Spring sentados lado a lado em uma mesa de escola. Nick é um homem branco de cabelos lisos e loiros. Charlie é um homem birracial de cabelos ondulados e pretos. Os dois vestem o uniforme da escola Truham, uma camisa branca com gravata. Ao fundo há um poster de biologia com partes do corpo humano e suas funções
Os livros de Heartstopper somam 4 volumes; no Brasil, as HQs tem publicação da Editora Seguinte e tradução de Guilherme Miranda (Foto: Netflix)

Apesar de buscar a sensibilidade como plano de fundo – algo reforçado pela estética colorida e os elementos animados que retomam as ilustrações dos quadrinhos –, a narrativa não deixa de expor o quão violento é viver em um mundo de pensamentos retrógrados. Assim, aos poucos o exterior passa a invadir o desenvolvimento da relação dos protagonistas e criar questionamentos e muita pressão social

Em tons pastéis, inseguranças são desenhadas em Nick, Charlie e até mesmo no ciclo de pessoas que os acompanha: Tao Xu (William Gao), Elle Argent (Yasmin Finney) e Isaac Henderson (Tobie Donovan). O núcleo secundário se mostra afetado pelo medo de ver o amigo machucado ao mesmo tempo em que estabelece uma espécie de conforto para as situações controversas presentes na trama. 

Neles também é possível ver uma gama de representatividades e conflitos que se apoiam por construções de sexualidade e gênero, e as consequências de um contexto que sempre espera pela cisheteronormatividade. Seja nos comentários de canto sobre a transgeneridade de Elle ou nas dúvidas sobre a sexualidade de Tao, que mesmo sendo um homem hétero não performa os comportamentos esperados, a farpa que fura a bolha de amizade e aceitação fica sempre à espreita. 

Cena da série Heartstopper. Na imagem estão Elle e Tao. Elle é uma mulher negra de cabelos crespos e castanhos escuros, ela veste uma camiseta amarela, um colete azul, um casaco amarelo e um óculos de armação arredondada. Tao é um homem amarelo de cabelos lisos e pretos, ele veste uma camiseta branca e um colete vermelho. Os dois estão deitados no chão lado a lado.
A segunda temporada de Heartstopper está prevista para o início de Agosto de 2023 (Foto: Netflix)

Não é como se o fato da obra ir para o streaming não tivesse um pequeno impacto no roteiro – também assinado por Alice Oseman. Exemplos disso são a inserção de Imogen Heaney (Rhea Norwood) e sua tentativa de trazer um conflito típico em histórias sobre adolescentes ou na construção de um Nick menos obstinado que em sua versão gráfica. O movimento deixa claro: para o audiovisual, as coisas buscam ser mais difíceis que o habitual. 

O preceito não se aplica mal, mas é genuinamente desnecessário, já que, mesmo nas histórias mais doces, a vivência LGBTQIA+ é forçada a se ancorar na resistência. Rotas alternativas em busca de empecilhos são uma perda de tempo quando a própria ideia de ser de verdade perante a sociedade já é uma grande jornada cercada de explicações, invalidação e exigências.

Ainda assim, Heartstopper preza por ser um abraço caloroso e o acolhimento dos pais dos protagonistas prova isso. As presenças da sempre deslumbrante Olivia Colman como a compreensiva Sarah Nelson, e dos preocupados Jane (Georgina Rich) e Julio Spring (Joseph Balderrama) transformam o apoio em um personagem de peso, capaz de iluminar a atmosfera e fazer quem assiste ficar com os olhos cheios d’água. 

“Você já sentiu que faz as coisas porque todo mundo faz e que tem medo de mudar?” (Foto: Netflix)

Talvez seja isso que faça Heartstopper ser tão encantadora: os personagens secundários são bem desenvolvidos e essenciais para o equilíbrio da trama. Até quem tem falas tímidas consegue contribuir para a completude da produção, como é o caso da irmã de cara fechada e coração aberto que sempre protege Charlie, Tori (Jenny Walser). Assim, cada acontecimento ganha estabilidade na força dos laços que já existiam ou estão apenas começando. 

A série não é sobre um casal, mas sobre todo o contexto de pessoas em volta dando suporte às descobertas e receios, enquanto expõem com maturidade suas próprias inquietações. O relacionamento de Tara Jones (Corinna Brown) e Darcy Olsson (Kizzy Edgell), o ciúmes aparentemente irracional de Tao e até a discrição de Isaac performam papéis de ação e reação. 

O efeito não fica preso aos coadjuvantes, mas se estende também aos antagonistas, Ben Hope (Sebastian Croft) e Harry Greene (Cormac Hyde-Corrin). Cada abuso e atitude perversa deixa marcas e isso reitera a ideia de que a consequência de toda atitude existe e é palpável a níveis diversos – nesse caso, como um alarde para a temática da saúde mental quando se trata de minorias sociais. 

Cena da série Heartstopper. Na imagem estão Tara e Darcy dançando em uma festa. Tara é uma mulher negra de cabelos crespos e castanhos escuros, eles estão presos em um coque com duas tranças laterais, ela veste uma blusa de manga longa na cor bege. Darcy é uma pessoa não binária branca de cabelos loiros lisos, eles estão meio presos em dois coques.
Heartstopper já tem renovação confirmada também para a terceira temporada (Foto: Netflix)

Com vulnerabilidade sincera, Alice Oseman e o diretor Euros Lyn nos oferecem uma história brilhante. Sem esconder as dificuldades de ser LGBT, e até mesmo as de ser humano, Heartstopper vive uma verdadeira jornada em busca do amor, seja do próprio, das amizades, da família ou do romântico. Além de trazer um enredo apaixonante, a versão audiovisual cumpre muito bem seu papel de se adaptar às telas sem perder a essência. Muitas vezes, os personagens realmente parecem ter saído diretamente do papel.

Para aqueles que viam os adolescentes se apaixonando na televisão e nos cinemas, mas nunca se imaginaram vivendo o mesmo porque seus sentimentos não eram aceitos, a 1ª temporada da série é um alento esperado por muitos anos. Em um mundo voraz, sentir frio na barriga junto dos protagonistas nos lembra que, a passos lentos, a comunidade queer conquista espaço todos os dias, inclusive quando se tratam das inocências de um bom clichê em uniformes pomposos. 

 

Deixe uma resposta