Gabriel Gatti
Por muitos anos, homens, crianças e principalmente mulheres foram perseguidos acusados de bruxaria. A criação do livro Malleus Maleficarum, em 1484, serviu como um manual educativo para perseguir e eliminar indivíduos suspeitos de realizar ações paranormais. O guia é de autoria de Heinrich Kraemer, inquisidor famoso durante a Idade Média, e algumas versões da obra chegam a contemplar a bula papal de Inocêncio VIII, chamada Summis Desiderantis Affectibus, que demonstra apoio à caça às bruxas. Ao estudar profundamente o livro, o diretor e roteirista dinamarquês Benjamin Christensen se inspirou para criar sua obra-prima, Häxan – A Feitiçaria Através dos Tempos.
Muito antes de séries como Harry Potter, Castelo Rá Tim Bum e Os Feiticeiros de Waverly Place, Häxan já trazia a temática da bruxaria para as telonas do Cinema. Lançado em 1922 na Suécia, o filme apresenta a jornada da feitiçaria ao longo dos séculos através de uma narrativa semidocumental, isto é, encenações do cotidiano das bruxas desde a Pérsia antiga, enfatizando o período medieval, até 1920, ano em que a película foi lançada. Desse modo, a obra funciona como uma simulação, elucidando ao telespectador qual o perfil social perseguido ao longo dos séculos, contrapondo com a brutalidade do Malleus Maleficarum ao apresentar imagens de livros e instrumentos de tortura utilizados contra os feiticeiros.
Para tornar mais fluido um conteúdo tão denso e pesado como a caça às bruxas, o diretor Christensen fragmentou a obra em sete capítulos, cada um centrado em um determinado costume histórico e conhecimento popular do período. Logo de início, o filme se debruça em uma aula sobre bruxaria ao longo dos séculos, assim, consegue esmiuçar peculiaridades do misticismo da Idade Média na sequência. Em particular, a película traz grande destaque ao Sabbath das Bruxas, recriando o encontro noturno de mulheres com demônios para beber, dançar e realizar práticas sexuais. Apesar da veracidade do ritual nunca ter sido comprovada, algumas pessoas o relataram ao passarem pela Santa Inquisição.
É importante ressaltar que a obra não aceita passivamente os relatos de bruxaria narrados no Malleus Maleficarum, levando inclusive o espectador a refletir sobre a situação. O filme é balanceado entre momentos informativos e questionadores, e outros mais narrativos e fantasiosos. Sendo assim, os capítulos são guiados pela interação social com as bruxas durante o medievo, em contraste com a apresentação de documentos que reforçam os argumentos do diretor de Häxan a respeito da perseguição.
Quando se fala sobre a caça às bruxas durante a Idade Média, há um grande protagonismo da Igreja Católica. A instituição controlou os costumes em algumas regiões no período e essa dominação não fica de fora dos relatos de Häxan. O longa mostra que grande parte dos fatores que levavam uma mulher a ser considerada feiticeira estavam relacionados às práticas rotuladas como impróprias para o catolicismo. Para ir à Inquisição, não era preciso necessariamente a prática de ações místicas, e sim a heresia. Por isso, segundo o filme, em um curto período de tempo, cerca de oito milhões de mulheres, homens e crianças foram mortos.
Vale ressaltar que, apesar dos relatos brutais que ocorreram na História, o período medieval não foi marcado unicamente por feitos sórdidos. O rótulo comumente apresentado ao século XV de Idade das Trevas foi atribuído pelos ideais renascentistas que previam um descolamento das práticas medievais. Durante o período do medievo surgiram grandes invenções, como os moinhos de vento, as chaminés e os óculos, além da coexistência de outras religiões com o cristianismo. No entanto, os recortes que se popularizaram foram as lutas de cavaleiros, os castelos cercados por muralhas e as bruxas queimadas em fogueiras retratadas por Häxan.
Além de todo o embasamento histórico usado na construção da narrativa de Häxan – A Feitiçaria Através dos Tempos, o filme teve grande investimento financeiro para recriar cenários e compor figurinos. Para a dramatização, o longa conta com trilha sonora clássica que inclui obras de Schubert, Gluck e Beethoven, e inovou com a Fotografia de Johan Ankerstjerne e direção de arte de Richard Louw, que utilizaram técnicas de stop motion, replay e sobreposição de imagens. Alguns desses efeitos já compunham A Carruagem Fantasma, porém Häxan os emprega de forma original em uma narrativa totalmente diferente do padrão produzido durante a década de 1920.
Justamente pela inovação, Häxan serviu de inspiração para obras cinematográficas recentes. Basicamente todos os filmes que envolvem bruxas e demônios beberam da fonte do clássico de Christensen, como O Exorcista e suas famosas cenas de possessão, O Bebê de Rosemary, em que a protagonista dá a luz ao filho do diabo, e A Bruxa de Blair com seus rituais bizarros para aprisionar os jovens perdidos na floresta. Além desses, é possível observar influências do semidocumentário norueguês em O Massacre da Serra Elétrica, em que o objeto cênico serve para criar a atmosfera aterrorizante, exatamente como Häxan fez ao apresentar os utensílios de tortura utilizados pela Santa Inquisição.
Toda a contextualização sobre bruxaria que percorre o filme serve para guiar o espectador para a crítica social que Benjamin Christensen realiza no sétimo capítulo. Esse momento da narrativa mostra o período contemporâneo de perseguição às mulheres, aos pobres e às pessoas com deficiência, similar à que ocorria com as bruxas durante a Idade Média. No medievo, o manual Malleus Maleficarum acusava a figura feminina ao dizer que “O pecado de Eva não teria trazido morte para nosso corpo e alma se o pecado não tivesse sido transmitido depois a Adão, sendo tentado por Eva, não o Diabo; portanto ela é mais amarga que a morte”, porém, sob o olhar do diretor, esse cenário não se mostra muito diferente nos anos 1920.
A crítica a respeito das práticas da Santa Inquisição e a forma com que as mulheres eram tratadas no início do século XX é o que torna Häxan – A Feitiçaria Através dos Tempos tão enriquecedor, único e atual mesmo cem anos após seu lançamento. E assim, juntando em um caldeirão o manual Malleus Maleficarum, um investimento financeiro pesado na caracterização dos personagens e cenários e uma crítica social severa a respeito da vida contemporânea, Benjamin Christensen conseguiu criar uma obra inovadora, singular e mágica.