Vitória Vulcano
Já faz alguns anos que, no histórico duelo de lançamentos entre Marvel e DC, as fórmulas odisseicas perdem o borogodó, a perfuração do espaço-tempo vira argamassa criativa e poucas narrativas se sustentam com fôlego e eficiência. Só que, enquanto a crise tenta trancar a porta do sucesso, The Boys vem, estilhaça uma janela e instala uma anarquia para tirar sarro do mito dos heróis. Depois de três recheadas temporadas cuidando do cerne aparentemente adulto da questão, o universo se abre para receber as doses de tesão e rebeldia de Gen V, spin-off centrado em uma trupe de jovens que, aos poucos, percebe o quão traiçoeira é a selva do capitalismo para quem carrega poderes sobre-humanos e hormônios à flor da pele.
Desenvolvida por Eric Kripke, Evan Goldberg e Craig Rosenberg – os mesmos criadores da série-mãe -, a produção se esgueira por aulas, festas e polêmicas da Universidade Godolkin, fundada e administrada pela famigerada Vought Internacional com o suposto objetivo de preparar os super-heróis do futuro. Igualmente baseada nos quadrinhos de Garth Ennis e Darick Robertson e lançada pelo Amazon Prime Video, Gen V preserva a onipresença da corporação bilionária em tudo que há de cruel e vertiginoso, ao passo que deixa novas vozes botarem para quebrar do próprio jeito. Afinal, estamos falando da primeira geração de heróis a descobrir que não são escolhidos de Deus, mas, sim, frutos de experimentos coordenados pela empresa e autorizados por seus pais, tanto em troca de dinheiro quanto por promessas de carreiras promissoras para os filhos.
A perspectiva de ascensão através do meio universitário ganha vida, inicialmente, pelos olhos da protagonista Marie Moreau (Jaz Sinclair), que descobriu seus poderes de modo traumático durante a puberdade e sonha em se tornar a primeira mulher negra integrante dOs Sete. Oficializada como caloura, a jovem órfã adentra as regras e ideologias de Godolkin fiel a deslumbramentos e esperanças que não demoram a cair em contradição e gerar crescente interesse pelas dinâmicas de influência do local – pano de fundo muito semelhante a um reality show que espreme o suco de seus mocinhos na mesma panela em que cozinha os piores vilões.
Os privilégios de etnia, gênero e classe vigoram até entre os seres dotados de autoregeneração física, que constantemente competem pelo topo de um ranking de alunos ordenado não só por notas exemplares, como também por seus números de seguidores nas redes sociais. Contudo, esse espetáculo de mídia mais que cínico remonta à acidez de The Boys sem abandonar o caráter em formação dos heróis recém-apresentados às drogas, gore, sexo e rock & roll. No texto afiado e atual, produzido por um vasto time de roteiristas, Gen V se sobressai ao recusar a moeda da moralidade como agente definidor de seus complexos personagens.
Assim, os arcos individuais que formam o macro são tão caóticos e singulares quanto qualquer dilema adolescente e se potencializam através do grande mistério da temporada. Se o mundo lá fora já cheira a corrupção e tragédia, o chorume começa a invadir o campus após Luke Riordan (Patrick Schwarzenegger), o nomeado garoto prodígio da instituição, assassinar um professor e se suicidar em seguida. A inexplicabilidade aparente das mortes atiça o senso de justiça dos amigos de Golden Boy e a própria Moreau, que se unem em investigações clandestinas, visitas ao subsolo da faculdade e experiências fundamentais para suas respectivas construções de identidade.
Conforme o ramo acadêmico se revela como mais um dos tentáculos corporativos da Vought para estudar e controlar super-humanos, a escolha de se rebelar contra o sistema ou aceitar o jogo coletivo de aparências – talvez intuitiva para os calejados anti-heróis da série original – traz equações paulatinamente mais disruptivas para os novatos. Envoltos em distorções de realidade e questionamentos comuns da juventude, cada membro do elenco incorpora habilidades especiais que representam questões psicológicas contemporâneas e conflitos especificamente desafiadores nessa fase da vida – perspicácia meritória de showrunners mulheres que trazem momentos de sensibilidade e ternura quase inéditos à engrenagem abarrotada de testosterona, dentro e fora das telas, de The Boys.
Enquanto Marie, um dos corações mais nobres e dilacerados da trama, tem o irônico dom de reger o fluxo sanguíneo de qualquer pessoa, Cate Dunlap (Maddie Phillips) é a manipuladora de mentes por vezes emocional e fisicamente impedida de atingir o ápice de seus poderes. O nepo baby Andre Anderson (Chance Perdomo, que infelizmente nos deixou no final de Março) quer honrar o legado do pai entortando objetos de metal menos rígidos que seus julgamentos sobre si mesmo; Jordan Li assume diferentes habilidades ao transitar entre os gêneros feminino (London Thor) e masculino (Derek Luh), atestando sua não-binariedade como instrumento de força; e Emma Meyer (Lizze Broadway), que pode aumentar ou diminuir de tamanho, ampara a jornada mais brilhante da temporada ao crescer para além das pressões da mãe e traços de dismorfia corporal.
Já o irmão caçula de Luke, Sam Riordan (Asa Germann), coloca os pés no mar do autoconhecimento depois de anos vivendo como cobaia de testes voltados para a criação de um vírus letal contra os super-heróis. O plano orquestrado pela reitora Indira Shetty (Shelley Conn), notado pelos docentes da universidade e aperfeiçoado pelo cientista Dr. Edison Cardosa (papel do brasileiro Marco Pigossi), posiciona o antagonismo de Gen V nas mãos de figuras de autoridade contrastantes, que se aproximam do precipício de culpabilidade na hora certa de acenar ao escopo brutal da produção original e interligá-lo à derivada sem beirar à exaustão de referências pré-prontas.
De fato, o Composto V se enreda pelas veias da narrativa em uma expansão de temas muito valiosa, que, inclusive, encontra espaço para aparições breves de Capitão Pátria, Soldier Boy, Billy Butcher, Victoria Neuman e alguns outros velhos (re)conhecidos do público. No entanto, a alma da festa se cria com os clichês de comédias adolescentes misturados à violência gráfica, sarcasmo delirante e drama meticuloso de um jeito que só uma ficção capaz de nos constranger com radicalismos políticos e sociais – como se o mundo real não fosse o bastante – pode exercer.
Das campanhas de marketing para levantar a moral de usurpadores de poder à explosão de um pênis em resposta a uma tentativa de assédio, Gen V brinca consigo mesma nos títulos dos episódios (com destaque para os saborosos God U, Welcome to the Monster Club e Jumanji), dá a seus efeitos especiais corda suficiente considerando o orçamento reduzido e engloba todos os espíritos de seu inferno astral em uma tremenda trilha sonora. Passando por viagens literais ao subconsciente dos jovens e cenas de luta encenadas com marionetes e toneladas de glitter, tudo é sensual, perverso, hilário e a gente pede bis.
Em matéria de heróis, ressalvando aquelas apostas que realmente miraram em solo firme, abraçar a nostalgia ou ficar na onda do “e se?” não faz mais sentido. Se os Vingadores não tivessem marchado em direção à aposentadoria e a Liga da Justiça caído em mãos poucos ambiciosas, ainda assim estaríamos falando de The Boys. Isso porque personificar a insolência da sociedade em um time de capa e armadura nunca foi questão de criatividade, somente de tempo. Não é de se impressionar que, agora, o absurdo esteja em invenções repetidas e CGIs às vezes mais responsivos que os personagens à sua volta.
Felizmente, uma continuação chega a bordo adicionando ao ecossistema despudorado uma aventura para ninguém botar defeito. Sob a pele de um coming-of-age subversivo, carismático e avassalador, a primeira leva da série ultrapassa o status de spin-off, amarra pontas do passado usando o próprio charme e estende o tapete – e o fio da navalha – para acolher a humanidade de sua potente juventude. Nas entranhas de uma das melhores ficções do momento, Gen V nasceu querendo ser hardcore e, pelo visto, sua mãe deixa.