Vitória Gomez
Rachel Weisz nunca pode ser demais e Gêmeas – Mórbida Semelhança sabe disso. Com a atriz britânica na pele das gêmeas Beverly e Elliot Mantle, a releitura do filme (quase) homônimo de David Cronenberg vira do avesso para explorar o outro lado da moeda: o longa original se torna uma minissérie e os irmãos, irmãs. No entanto, a obsessão e a relação doentia um pelo outro se mantém e a produção leva os limites médicos ao extremo, ao mesmo tempo que lida com duas figuras opostas presas em uma só.
Na série, Beverly e Elliot são médicas obstetras insatisfeitas com a maneira como o sistema de saúde lida com mulheres grávidas. Juntas, elas buscam investimento para abrir seu próprio centro de maternidade. A perfeita harmonia das duas beira a insanidade, mas a simbiose funciona no âmbito profissional e pessoal – até a chegada de Genevieve (Britne Oldford). Quando a atriz se envolve com uma das irmãs e elas se veem obrigadas a não mais viver uma para outra, o desequilíbrio leva desde a convivência doméstica até os bastidores da medicina ao extremo.
Gêmeas – Mórbida Semelhança vem da mesma premissa de Gêmeos – Mórbida Semelhança. Igualmente, no filme original os irmãos Beverly e Elliot vivem uma sintonia maníaca, que só é abalada com o envolvimento de um dos gêmeos com uma atriz. Enquanto o longa de Cronenberg é essencialmente movido pelo body horror, com a medicina e a ginecologia servindo como pano de fundo para abrir caminhos aos horrores da carne, a minissérie se volta ao psicológico das irmãs Mantle.
Apesar de ambas serem vividas por Weisz, a diferenciação é clara. Beverly é calma, contida e estratégica. Já Elliot fala o que vem na telha, não controla seus impulsos e nem sua boca, mas também não esconde sua devoção pela irmã mais nova. Com as duas estando lado a lado, sozinhas ou interagindo com outras pessoas, a atriz deixa claro como domina ambos lados da moeda e transita entre elas com tamanha facilidade que chega a confundir quem ainda não se familiarizou com os maneirismos de cada uma. Nos momentos em que Elliot finge ser Beverly ou vice e versa, Rachel Weisz prova sua maestria e faz qualquer indicação de Melhor Atriz em Minissérie parecer pouco para seu desempenho – ainda assim, ela concorreu à categoria no Globo de Ouro, perdendo para Ali Wong, de Treta.
Gêmeas – Mórbida Semelhança brilha em diferentes frontes. Se a atuação de Weisz é o grande chamariz da produção, o roteiro a dez mãos dá à atriz as condições para isso. Ousada e mórbida, a condução da minissérie transita entre a tensão e o horror, com momentos de comicidade que arrancam uma risada nervosa de quem não sabe o que esperar do que vem a seguir.
O estudo das personagens – além de reforçar que Rachel Weisz é tão habilidosa que tem química com ela mesma – confere ainda mais profundidade à série. Conforme Beverly e Elliot se entrelaçam uma na vida da outra, de maneiras até bizarras, as duas criam um embate entre seus objetivos. Enquanto a primeira é idealista e (a princípio) ética na busca por criar um ambiente que dê atendimento humanizado às gestantes, Elliot usa o espaço para abusar de experimentos ilegais em nome da medicina. Ambas defendem seus projetos com a vida e criam uma relação fascinante de co-dependência e estímulo intelectual.
Nas mãos de Alice Birch, indicada ao Emmy por Pessoas Normais e Succession, a minissérie ainda ganha tons de horror e drama. Articulando um design de produção que torna tudo mais sombrio, como o centro obstétrico cheio de segredos e aventais vermelho sangue (mérito de Erin Magill e Adam Scher), e uma fotografia acinzentada e com truques visuais para mostrar as gêmeas lado a lado (responsabilidade de Laura Merians Goncalves e Jody Lee Lipes), Gêmeas – Mórbida Semelhança aproveita a ingrata tarefa de adaptar a obra do mestre do body horror para criar um universo revitalizado.
Gêmeas – Mórbida Semelhança pode ter feito pouco barulho no catálogo do Prime Video ou na temporada de premiações, abocanhando apenas uma menção para Weisz no Globo de Ouro e uma para Lee Lipes como Melhor Cinematografia no Emmy. Ainda assim, a releitura de Cronenberg traz o horror para o universo feminino e mostra que as gêmeas podem ser tão tresloucadas e interessantes quanto os gêmeos.