Guilherme Veiga
Cozinhar, definitivamente, é uma Arte. Mesmo não estando inclusa entre as sete, a gastronomia sabe emular todas as sensações que as outras conseguem, às vezes de forma mais impactante e convincente que as demais. Seja pelo conforto e ternura de uma comida feita pela mãe, seja pela explosão sensorial do prato principal feito em um restaurante três estrelas Michelin ou até mesmo pela agonia que é experimentar algum ingrediente exótico. São essas experiências que Flux Gourmet, co-produção entre Reino Unido, Estados Unidos e Hungria, em cartaz na Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, e que estreou no Festival de Berlim, busca instigar.
Dirigida pela nova sensação do cult bizarro inglês, Peter Strickland, a obra presta homenagens, em uma espécie de miscelânea, ao Cinema, Teatro e Gastronomia. O longa segue a história de um coletivo artístico-culinário em seu período de ensaios e apresentações, pelo olhar de um escritor, encarregado de documentar o processo. A premissa, por si só, já é um antro de bizarrices, sendo muito difícil sequer contemplar esse conceito. Porém, Flux Gourmet consegue, e muito bem, escalonar suas ideias ao máximo.
A obsessão artística sempre foi uma tônica do Cinema, a exemplos de Whiplash (2014), Cisne Negro (2010) e Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) [2014]. E essas obras sempre flertaram – umas mais, outras bem menos – entre o suspense e o horror. Como o pano de fundo do longa de Strickland já tendo uma aura perturbadora para chamar de sua, a escrita tem maior liberdade para destrinchar essa obsessão, o que é muito beneficiada também pelo caráter de experimentação que o Teatro naturalmente tem.
Por isso, o idealizador consegue sair do arroz e feijão desse subgênero, traçando uma discussão sobre a Arte através da própria Arte, além de passear por outros entraves como o patriarcado e a exposição, tudo isso de forma muito consciente, engrossando o caldo de seu assunto-órbita que é a gastronomia. Aliás, é muito interessante como a obra usa esse fio condutor da comida para te conquistar pela barriga – só que, nesse caso, através de sequenciais socos no estômago.
É muito bem aproveitado pelo longa seus diferentes aspectos e a forma como eles são inseridos na narrativa. A fotografia, pelas lentes de Tim Sidell, por exemplo, sabe usar muito bem da parte documental, centralizando e aproximando em uma quase simetria os personagens que conduzem o estudo. Já a parte teatral dá uma outra ótica para o filme, com planos mais abertos que enfatizam a inserção dos personagens no cenário e exaltam o jogo de luzes.
Ainda no Teatro, a produção usa muito bem o seu design de som, de autoria de Tim Harrison. Durante os ensaios, a inserção de sons sob a improvisação dos personagens ajuda no processo de imersão do espectador. Já durante as apresentações, relembrando as jam sessions dos grupos mais progressivos e experimentais do século passado, as pick-ups plugadas nos mais diferentes tipos de comida criam uma atmosfera única, que amplifica ainda mais a estranheza da obra.
Um dos pontos de maior destaque do filme, além do roteiro, sem dúvidas é o elenco. A liberdade que a escrita dá permite que os atores consigam espremer ao máximo todo o suco de sua atuação. Contidos na hora que precisam ser e extremamente expansivos quando lhes é exigido tal expansividade, as atuações funcionam tanto em conjunto como separadas. Fatma Mohammed, musa de Strickland com quem já trabalhou em O Vestido Maldito e O Duque de Burgundy, rouba os holofotes para si e preenche todo o longa na difícil tarefa metalinguística de interpretar uma atriz. Já Asa Butterfield (Sex Education), Gwendoline Christie (Game of Thrones), Ariane Labed (O Lagosta) e Makis Papadimitriou entregam atuações concisas e bem trabalhadas, que vão crescendo de acordo com o desenrolar da obra.
Flux Gourmet talvez não seja o melhor feito de Peter Strickland, mas sem dúvidas é a mais sensorial de sua carreira. Como um bom cult de festival, o longa sabe chocar, a exemplo da cena do exame de colonoscopia feito em público, ou a performance a princípio envolvendo excrementos que serviria de prato cheio para a máquina de disseminação de fake news da direita conservadora brasileira. Mas é interessante notar como o diretor não usa o choque somente pelo choque, mas sim para desenvolver uma reflexão sobre o limite da Arte e o uso dessa impressionabilidade na mesma, enquanto o próprio filme é uma peça artística. Como qualquer comida, o longa talvez não seja para todos os paladares e muito menos para todos os estômagos, mas, ainda assim, tem um alto valor, seja ele nutritivo ou como experiência.