Vitória Gomez
Longe dos grandes números de bilheteria e do glamour do tapete vermelho, os documentários compartilham o modo divino do Cinema de contar a vida. Aqui, o retrato é através da própria realidade. Neles, sem os artifícios da ficção, o desafio se torna envolver com a apresentação de uma verdade nua e crua – ou pelo menos, da verdade de quem a conta, já que a imparcialidade de um interlocutor é apenas sua, e não absoluta. Em Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft, porém, a História é tecida de acordo com as fotografias e filmagens da câmera e dos arquivos de Katia e Maurice Krafft, vulcanólogos franceses pioneiros no trabalho com vulcões.
Enquadrando as vésperas da morte dos dois como fio condutor da narrativa, o destino está traçado e a diretora Sara Dosa usa dos 93 minutos seguintes para recontar seus caminhos até ali. De forma curiosa, as gravações tomam forma sob a narração ora convidativa, ora morna de Miranda July. A atriz encarrega-se da importante tarefa de, junto à edição, tornar o compilado de imagens um todo, e relata os abalos sísmicos e seus aspectos técnicos tão amorosamente quanto fala sobre a relação romântica entre os dois protagonistas.
O próprio título original do documentário é exemplificativo em retratar seu teor: Fire of Love (em tradução livre para o português, “fogo do amor”) é mais sobre a relação de amor de Katia e Maurice um pelo outro e de ambos pelo objeto da profissão do que é sobre os abalos sísmicos documentados em si. Os dois, que se conheceram na década de 1960, na Universidade de Estrasburgo, na França, descobriram uma peculiar paixão em comum pelos vulcões e, em uma época em que a área de conhecimento ainda era escassa de profissionais, se debruçaram juntos sobre os gigantes terrestres – quase literalmente.
Juntos como uma dupla no amor, na vida e na ciência, o casal passou a lua de mel e os primeiros momentos como casados na ilha de Stromboli, que abriga um dos três vulcões ativos da Itália. É mesclando as aventuras enquanto vulcanólogos aos depoimentos dos Krafft enquanto casal que Vulcões prende a atenção. Para eles, “a vulcanologia é uma ciência da observação”; para nós, a animação dos dois diante dos seres quase mitológicos, imensos demais para serem incompreendidos, e a coragem de explorá-los juntos, é que valem a pena a observação.
Colecionando centenas de horas de gravação, longas-metragens, fotografias e obras literárias, as produções de Katia e Maurice Krafft não só serviram de inspiração para Dosa: o cineasta Werner Herzog também foi um dos que bebeu da fonte do legado dos franceses. Em Visita ao Inferno, o diretor investiga a relação entre Homem e misticismo lidando com vulcões ativos, e usando de passagens documentais do casal. No mesmo ano, Herzog lança The Fire Within: A Requiem for Katia and Maurice Krafft. Com a mesma proposta de Fire of Love, o alemão une filmagens dos Krafft para discorrer sobre a vida pessoal dos dois.
Entre um vasto acervo de material, a eletrizante montagem de Erin Casper e Jocelyne Chaput impulsiona Vulcões. A narração literária de July só é possível graças ao trabalho das editoras em compilar trechos sem contexto, depoimentos e artifícios animados, como mapas e infográficos de vulcões, de forma coesa e estável. Dando espaço para Maurice e Katia proferirem suas declarações de amor um ao outro, e para os abalos sísmicos acontecerem em tela no seu tempo real, a sensibilidade da dupla mescla a contação de histórias ao trabalho da vulcanologia e os momentos de reflexão que o próprio casal demanda em suas gravações, em que apresentam imagens surpreendentes, quase lúdicas.
Em determinados momentos de Fire of Love, Maurice, convertido em um popstar, afirma saber que morreria em um vulcão. Katia, em outra passagem, sabe que seu destino é do lado do marido, onde quer que fosse – mas os dois já sabiam onde seria. Como um contraponto – ela calculista e estudiosa, ele aventureiro e imprudente a ponto de entrar em um lago de ácido e sonhar em descer um rio de lava em um barco -, a dupla cativa com suas personalidades. Seja dançando com trajes metálicos em frente a um vulcão em erupção ou discutindo os aspectos técnicos de um abalo, os Krafft mantiveram seu legado de amor e de ciência.
Em vida, os vulcanólogos se tornaram referência na área, a ponto de serem chamados toda vez que uma erupção se iniciava. Eles presenciaram os assassinatos causados pelo Mount Saint Helen, nos Estados Unidos; passaram pelo inconstante Nyiragongo, no Congo; o até então inocente e turístico Krafla, na Islândia; e o destruidor Nevado del Ruiz, na Colômbia. Foi no pós-tragédia do vulcão colombiano que Katia e Maurice, que optaram por não ter filhos para investigar as maravilhas naturais, decidiram seu projeto final. O casal sabia do potencial destruidor do seu objeto de trabalho, e, após a morte de cerca de 23 mil pessoas por negligência do Estado da Colômbia, que havia sido avisado de que o Nevado del Ruiz poderia entrar em atividade, escolheu dedicar seu tempo e estudo para alertar autoridades acerca dos perigos dos abalos e das medidas de proteção.
Em uma das categorias mais diversas e políticas do Oscar, o retrato de vida e trabalho do casal francês abocanhou uma indicação como Melhor Documentário em Longa-metragem, mesma nomeação conquistado no BAFTA, o Oscar britânico. Indicado em Documentário, que é Cinema, sim: como a Animação ou a ficção, se Katia e Maurice Krafft abraçaram o documental como meio para a Arte, por que a indústria cinematográfica reluta em o fazer?
Ao final, a homenagem à dupla só não supera o sucesso da trajetória profissional dos vulcanólogos. O projeto de alerta e conscientização salvou vidas, mas não a dos Krafft. Na observação do Mount Uzen, em erupção no Japão, os dois não deixaram o território e filmaram os destroços causados pelo gigante terrestre. O casal foi encontrado morto, lado a lado e de mãos dadas. Em memória a eles e ao seu legado, Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft relata sua morte, mas também o trabalho de uma vida. De duas vidas, unidas pela paixão pelos vulcões, retratadas pela paixão pelo Cinema.