Vitória Vulcano
Dê a Sam Levinson a chance de borrar as linhas entre o drama e o escárnio humanos, e ele voltará escrachando toda e qualquer camada da vida. Da produção de X, passando pela roteirização de Malcolm & Marie e atingindo a direção de País da Violência, essa tática marca seus passos em Hollywood. E foi participando dos três pilares da Sétima Arte, conjuntamente e pela primeira vez, que o cineasta criou a singular Euphoria. Vira e mexe empilhando aclamação e burburinho nas portas dos estúdios HBO, desde sua estreia avassaladora em 2019, a série redefiniu o sucesso televisivo e cultivou expectativas de sobra para sua segunda temporada.
A continuação chegou em Janeiro deste ano, no já conhecido (e nunca exatamente familiar) clima de barbaridade juvenil. Isso porque, após elaborar episódios especiais a partir dos impasses pandêmicos para revelar transcendentalmente as jornadas individuais de Rue (Zendaya) e Jules (Hunter Schafer), e o embaralho sentimental que se transformaram uma para outra, Euphoria retorna ao macro bem mais carregada de si mesma. Nenhuma ferida exposta anteriormente cicatrizou, ninguém consegue se acostumar com tanta tragédia e esse é o terreno perfeito para banhar de sal a nova versão de uma narrativa essencialmente sentida pelas dores.
Palco de uma caótica festa de ano novo, o episódio inicial da segunda safra faz a premissa se desenrolar em uma sequência de eventos curtos e, seguindo o pique da primeira temporada, impactantes pelos sete capítulos à frente. Inevitavelmente, Trying to Get to Heaven Before They Close the Door proclama que a provocação segue sendo o coração construtivo da fabricação de Levinson. É a sensação que enviesa as questões-chave da segunda leva de Euphoria e as configura na altura do polêmico – que quase nunca é a mesma vibração do espectador -, aproximando todos os núcleos da história na unha e na vontade de fazê-los mais expansivos do que as telas que os transmitem.
Sinestésica e ressentida com o universo em que respira, Euphoria tem um ano dois ainda mais distante do didático, graças à atividade árdua e recorrente que é viver sem enlouquecer ou se alienar no pós-pandemia. Rue recai no vício e, mesmo que decepcionados e não surpreendidos com a postura, o silêncio é nosso consentimento enquanto audiência. Sobretudo quando a garota lista seus motivos para fugir da realidade e perfura a passividade do público: não necessariamente nos drogamos, mas assistimos adolescentes serem aditivos e repulsivos em um plano paralelo. Queremos alguns minutos fugindo de atentados à democracia, negacionismo científico e outros males absurdos nem que seja acompanhando uma ficcionalização da aflição, sem paz iminente e que nunca prometeu finais felizes. Afinal, “as pessoas só querem encontrar esperança”.
Essa ironia melancólica não sustenta apenas a dualidade contida na protagonista – que é um show a parte – mas caracteriza os ganchos agridoces da série na temporada atual. Comparada ao pioneirismo de Skins e às controvérsias escalares de 13 Reasons Why, Euphoria equilibrou seu charme, nas origens, encabeçando episódios com o yin-yang existencial de cada personagem e projetando esses arcos particulares na efervescência do coletivo. Contornando a narração onisciente e não mais única da irmã Bennett mais velha, os capítulos, agora, não possuem linha de roteiro traçada ou sugestiva para o futuro destrutivo de alguém. No entanto, a confusão faz três nomes ofuscados até então passarem a infiltrar a história, através da tratativa anterior.
Angus Cloud finalmente saiu das beiradas que seu papel costumava habitar apenas nos lapsos e desabafos de Rue. Mostrando sua infância recheada pelo abandono e norteada pelo tráfico de narcóticos, realizado pela única figura materna presente, sua avó, a produção faz do instituto protetor e carismático de Fezco antídotos para sua sobrevivência e, sobretudo, resistência. Embora estrelando a pancadaria simbólica e colossal em Nate (Jacob Elordi), o ruivo cresce para valer, transbordando seu lado afetuoso, dividido com o irmão mais novo, Ash (Javon Walton), e com Lexi (Maude Apatow), seu recíproco interesse amoroso.
Falando em sensibilidade aproveitada, a personagem de Apatow é um verdadeiro banquete. Se antigamente a jovem seguia um caminho contrário para chegar ao mesmo fim de seus colegas de cena, blindando-se da hostilidade sem uso de alucinógenos, mas retificando a si própria como coadjuvante, a caçula das Howard vence os panos de fundo da trama pelo cansaço de seu brilhantismo. Corajosa e amistosa, da reconstituição da amizade com Rue à modelação da peça teatral despudorada e frenética – que estatelou os nervos e músculos da narrativa nos episódios finais – ela foi a motherfuckin’ G.
A tríade que salta aos holofotes é completada pelo temeroso pai de Nate (Eric Dane). Fechando um capítulo inteiro para desmascarar sua existência forjada na tradicional família americana, a série remonta à juventude do homem, arrasada pela paixão homoafetiva não consumada e pela gravidez repentina de sua namorada na época. Por trás do emaranhado de desejos suprimidos que formam o predador sexual retratado, Euphoria tenta dizer que a agressividade compulsória e o sadismo de criar filhos à sombra de seu mais repugnante reflexo são a armadura de Cal.
Ainda que a produção nunca tenha materializado arcos de redenção, o experimento de humanização do Jacobs mais velho nos faz perguntar quem consegue revelar a revolta por trás de suas contradições, recebendo chances de atenuação pelo júri do público. A manobra da trama traz estereótipos da mais brutal ordem, já que acusações de pedofilia e estupro, como as que rondam a trajetória do genitor, sempre foram relacionadas à comunidade LGBTQIA+. E não é errado dimensionalizar vilões desvendando o que impulsionou aqueles traços de amargura e bestialidade. Entretanto, tratar sua identidade, fruto de uma forma subjetiva e insalubre de lidar com a realidade através de um labirinto que pode se resumir a orientações sexuais é, no mínimo, problemático (especialmente para Euphoria).
Retomando o modus operandi da história, temos a fórmula de escandalização do moralismo, que apregoa a mente de quem se pega canalizando a barra não só da exposição de Cal, mas de milhares de momentos. Infelizmente, não vivemos em um planeta evoluído o bastante para a ridicularização de nossas mazelas servir como ferramenta de conscientização ou instigar qualquer mudança. E, caramba, como Euphoria brincou incansável e assertivamente com isso em seus primórdios nada ortodoxos. Mas, com o avanço do Ensino Médio e a necessidade de um amadurecimento à altura, a progressão narrativa parece se apossar de uma ânsia de gente grande, incapaz de processar a essência que o básico dá à conjuntura.
Se na primeira leva toda a genialidade da ficção partia de um cadenciamento, em que, apesar das cenas performáticas e fugazes, o raciocínio prevalecia, o presente entrega uma Euphoria refém do ímpeto de chocar a qualquer custo. O tal realismo emocional, que antes era compartilhado não somente pelo criador da obra, mas igualmente por outros nomes vinculados ao propósito artístico, agora passa a se centralizar nas mãos de Sam Levinson em uma demonstração típica de como impérios caem pela ambição.
Diferentemente de séries que definharam em qualidade sem seus fundadores, a presença excessiva do cineasta pode ser culpabilizada por várias deficiências e armadilhas geradas na produção do HBO. Todos os episódios da segunda temporada são unicamente dirigidos e escritos por Levinson, que obviamente não conseguiria atender às expectativas de escandalização, nem dar ritmo e coesão às múltiplas vertentes da história, sozinho. Às avessas da complexidade outrora construída, a safra se contenta em sonhar raso no desenvolvimento figurativo e psicológico, mirando em erros de principiante ao não saber adicionar rostos novatos à trama – ou mesmo trabalhar os veteranos – sem perdê-los de vista.
Com exceção da abordagem recebida pelo trio mencionado e pela protagonista de Zendaya, as principais afetadas são as personagens femininas – que sempre corporificaram o primor do universo eufórico. Jules fica restrita a uma trilha de inconveniências alheias à sua notável evolução, dando advertências e tapinhas nas costas de Rue aqui, aleatoriamente tendo um caso com o melhor amigo de ambas ali. Abrilhantadas com a participação da escrita aguçada de Hunter Schafer em F**k Anyone Who’s Not a Sea Blob, as práticas da garota, na atual temporada, se tornam tristemente programadas para reduzirem suas nuances ao egoísmo.
Em contrapartida, falas e ações são tudo que o plot acaba devendo para Kat (Barbie Ferreira). Ela não se sobressai no namoro, nas amizades e menos ainda na própria história, pintando como alívio cômico nos perrengues gerais do ano e martelando incapacidade em seus dramas pessoais. A desatenção é tão extrema que até os rumores supondo o que ocasionou a situação foram melhor elaborados do que a atuação obtida pela personagem.
Enquanto as suposições de desavenças e descuidos nos bastidores da temporada funcionavam como suporte externo para o apetite que Euphoria não saciava em cena, o trato omisso se consolidava com os novos intérpretes. Os arcos de Elliot (Dominic Fike) e Laurie (Martha Kelly), embora espontaneamente divertidos ou revoltantes na coletividade do drama, quando isolados das trupicadas e levantadas de Rue, não preenchem uma página de significado consistente. Apesar de similarmente limitada ao beabá das drogas, a adesão de Faye (Chloe Cherry, que aqui estreia na TV) se conecta a outros pontos de riso e tensão. Levemente do outro lado da moeda, Ali (Colman Domingo) engrandece sua performance iniciada em Trouble Don’t Last Always e dá merecido fôlego ao conforto ácido da narrativa.
Seguindo essa eterna brincadeira de espaço e tempo no macro, a segunda leva da produção busca um encaminhamento inusitado se concentrando – aos trancos e barrancos – no eixo dividido por Cassie (Sydney Sweeney), Maddy (Alexa Demie) e Nate. O triângulo amoroso é purgatório de si mesmo em inúmeros sentidos, sobretudo para as melhores amigas que descarrilam suas respectivas individualidades em troca de um romance duvidoso, com um sujeito de caráter mais questionável ainda. Só que, no final do trauma, a verdadeira discussão não reside nos trejeitos voláteis e objetificadores de Jacobs; o que permite as idas e vindas cruéis do atleta na psique das garotas é uma fragilização sentimental predisposta que ele não criou, porém, aprendeu a controlar maliciosamente.
Nessa toada, a história acerta ao duplicar a dor de Maddy em um processo de maturação gradativo. A garota descobre plenamente a toxicidade de estar com Nate quando perde um laço afetivo tido como inabalável e baseado na confiança, sensação que ela pensava dominar tanto no namoro e na amizade quanto em si própria e, na reviravolta, passa a aprender o valor na marra. Já para Cassie, os dias de crescimento permanecem como miragem à medida em que sua combustão emocional e tendência de procura por aprovação masculina ramificam debates pontiagudos que conduzem a série.
Um dos discursos batidos de Euphoria é expor que as escolhas de seus personagens não existem em bolhas e, por isso, podem esvair para todos os núcleos da narrativa constantemente. Aspecto esse que poderia unir dramas soltos ao longo da temporada, mas não encontra respaldo para acompanhar a entrada de Rue no tráfico, a rivalidade eclodida entre Fezco e Nate, e principalmente o espiralar de Cassie no remorso de perder Maddy e na humilhação de amar quem a rejeita (tudo vivido por ela após a realização de um aborto, que não entra em pauta após a primeira season finale). Ao mesmo tempo em que alucinamos com a instabilidade da loira – fruto da dedicação excepcional de Sweeney -, pouco esforço existe para fazê-la transpor sua ruína além de rituais de beleza aflitivos e muitas cenas de nudez.
Novamente navegando na obsessão em desfilar absurdos, corpos sem roupas são a fagulha da ficção que se volta propositalmente para a desnivelação social entre o nu masculino e feminino. Sem perder o trem, a segunda safra já começa com um pênis escancarado na tela do espectador – só não se engane, não é sexy, é só um pedaço de carne. E por que a nudez deveria ser vista de outra forma? Ninguém te dá a resposta, mas exageram na dose de pele de Cassie à mostra para, surpresa!, provocar a dúvida. Como Emilia Clarke provou no passado, obviamente a escolha pesa quando falamos das mulheres: o nu estraçalha o angelical e as vulnerabiliza na vilania, ainda que devesse passar longe disso. Nesse espectro, a consciência da atriz americana no assunto a coloca acima de todas as limitações narrativas de Euphoria ou do mundo – o que não absolve a série da prepotência de achar que nudez subversiva sobrepõe ausência ou desvirtuamento de conteúdo.
Fato é que a gama de inventividades e rebuliços da segunda leva caminha obrigatoriamente para o inigualável estrelato de Zendaya. Agora produtora executiva da série, a artista desbrava, sem qualquer melindre, profundidades cruas e hipersensíveis para a lapidação de sua personagem. Se Rue era impiedosa com seu modo de vida e os olhares externos destinados a este, ela usa os novos capítulos para assumir o máximo de cada impressão não verbalizada que experienciamos ao vê-la em cena, literalmente do amor ao ódio. As dicotomias mais arrasadoras acontecem na abstinência de Bennett em Stand Still Like the Hummingbird, em que perseguições e confissões solidificam quem protagoniza Euphoria e se projetam para a história cinematográfica.
Com essa aspiração na ativa, a atriz merecidamente estende seu currículo no Primetime Emmy Awards. Na 74ª edição da premiação, Zendaya foi nomeada como Melhor Atriz em Série de Drama, categoria que sua Rue já venceu em 2020. Esse ano, ela é euforicamente acompanhada por Sydney Sweeney, que aparece tanto na lista de Melhor Atriz Coadjuvante em Drama, quanto se destaca nas indicações em Melhor Atriz Coadjuvante em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme por sua performance em The White Lotus.
Em meio às ressalvas estruturais, Euphoria preenche outra vez as nomeações em Melhor Série de Drama, competindo com a ganhadora do Globo de Ouro Succession e outras produções chamativas dos últimos meses, como Better Call Saul, Severance e Squid Game. Aguentando um roteiro débil e ainda sendo excepcionais, as interpretações gerais também foram lembradas e emplacadas em Melhor Elenco em Série de Drama. Por outro lado, Sam Levinson não conquistou nenhuma indicação nas seções especializadas em direção do Oscar da TV.
As menções honrosas ficam para a contextualização técnica da ficção, que figura em nove categorias do Emmy 2022. Euphoria sempre se ofereceu pelos olhos, e a atmosfera que arquitetou seu princípio foi fatal para torná-la um fenômeno estético pontilhado pelo trauma. Agora, demolindo as sobrecargas de glitter e neon que climatizavam o passado da narrativa, a segunda temporada se faz pela infiltração sóbria de violência e soturnidade. Descamada em jogos de luzes, ora sólidos, ora rápidos, a fotografia engenhosamente expõe os embates e pensamentos pela brutalidade da própria existência, rendendo à série a participação na categoria Melhor Fotografia em Série de Câmera Única (Uma Hora).
A crueza é estabelecida pelo enquadramento de câmeras analógicas, que captam os figurinos e as maquiagens – refletores do estado mental de cada personagem. Todos os tons obscurecem com os rumos da história, especialmente nos desdobramentos de Cassie, Jules, Lexi e Maddy. A musicalidade é outro fator dimensionante de Euphoria, atravessando temas underground, sucessos já assimilados pelo público e canções encomendadas para a série.
Uníssono anteriormente, no ano dois, Labrinth se divide com Dominic Fike, James Blake, Lana Del Rey e Tove Lo no lançamento de catarses exclusivas. Invadindo ouvidos e corações, a visceralidade das notas está no luto de Rue, nas frustrações coreografadas de Cal e Cassie e nas aversões mais memoráveis dos episódios. Nesse ritmo, a segunda temporada da produção concorre a Melhores Músicas e Letras Originais e Melhor Supervisão Musical, esta última pelo trabalho de Jen Malone e Adam Leber.
Prestigiada pela honestidade identitária de seus visuais e dramas iniciais, Euphoria escalou o hall da fama tão rapidamente que superestimou a si mesma. Como seus personagens que são espelhos, a trama também faz tudo o que a transtorna no interior da segunda temporada se sobressair em marcas visíveis. Subjugar suas riquezas ao monopólio criativo de Sam Levinson custou rachaduras intensas, porque barbarizar demais e despreparado tem um preço. A superação positiva de tabus e nuances só existe se entendemos porquê e para onde vamos, e a insuficiência lógica pode até satisfazer ao mostrar onde perdemos nossa humanidade, mas não combina com um universo dedicado a examinar a miscelânea existencial que nos caracteriza como humanos.
Crescer na produção do HBO permanece uma revolução física e emocional, não apenas na ideologia, mas principalmente na ultrapassagem de negligências narrativas. Depois de autoafirmar seu potencial destrutivo, radicalizar sua maior anti-heroína e renovar as esperanças de sua personagem mais emblemática, a série parece ter perdido o dom da alquimia – a habilidade de unir ciência, arte e magia para transformar o comum em ouro. Ainda que pouco da geração Z retratada seja ordinário ou factual, Euphoria sempre soube abrir mão da pretensão, que agora a assola, para fascinar. E, assim como Rue toma o episódio final para ficar sóbria inesperadamente, sua ficção merece uma terceira leva surpreendentemente próspera e multifacetada.