“Ainda é tempo de morrer amanhã, que será o ontem de depois de amanhã, se eu então continuar vivo.”
– Javier Marías
O primeiro ano do Clube do Livro está chegando: em Setembro, completamos nossa 12ª edição, preparados para encerrar um ciclo que nos fez próximos da Literatura como nunca antes havia acontecido. Iniciando as comemorações desse marco tão especial, trouxemos A Pediatra, de Andréa del Fuego, para deixar suas impressões sobre o tão saudável projeto caçula do Persona.
O que encontramos a partir daí, no entanto, foi um procedimento nada convencional. A obra da autora paulistana se concentra em Cecília, uma pediatra que é o exato oposto do estereótipo que lhe é associado. Longe da imagem maternal e paciente evocada pela sua profissão, a personagem é munida de uma frieza incorrigível, o que a faz, nem tão surpreendentemente assim, uma médica muito bem-sucedida.
Com essa narrativa peculiar, as palavras concisas de Andréa del Fuego permeiam um humor perspicaz no cenário da classe média alta de São Paulo. Pelo fluxo de consciência de Cecília e suas peripécias cirurgicamente calculadas, a autora não precisa de mais de 160 páginas para propor reflexões nada pretensiosas sobre papéis de gênero, relacionamentos familiares e desigualdades sociais.
Lançado em 2021, A Pediatra é somente a mais recente demonstração dos méritos da mestra em Filosofia laureada com o prêmio José Saramago em 2011. Na ocasião, a obra tratava-se apenas de seu primeiro romance: Os Malaquias, drama familiar que carrega a referência do Nobel de Literatura português, tido como a principal referência da autora. Enquanto a nova edição do livro integra novamente o título ao catálogo da Companhia das Letras, o último romance de Andréa del Fuego faz seu nome integrar novamente a lista do Prêmio Jabuti, Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Oceanos.
Mas nem só de comemorações são feitos os inícios e fins de ciclos. No 9º mês do ano, também houve a despedida de Javier Marías, escritor, tradutor e editor espanhol considerado um dos contemporâneos mais importantes da língua. Com apenas 20 anos, iniciou seus trabalhos literários com Os domínios do lobo (1971), se consolidando na Literatura da Espanha com os romances O homem sentimental (1986) e Todas as almas (1989). O cenário internacional veio em 1992, quando Coração tão branco rompeu todas as barreiras ao vender 1 milhão de exemplares e ser traduzido para mais de 40 idiomas.
Além de se destacar entre os romances, cujo hall de sucessos ainda engloba Os enamoramentos (2011) e a trilogia – considerada sua obra-prima – Seu rosto amanhã (2002-2007), o autor também era conhecido pelos seus contos e artigos, sempre alinhados pela sua perspectiva de formação e experiência como docente em Filosofia e Letras, primeiro pela Universidade Complutense de Madrid, depois na Universidade de Oxford. No dia 11 de Setembro, Javier Marías faleceu aos 70 anos, em decorrência de uma pneumonia. Sua extensa produção literária angariou respeito e admiração pela crítica e pelos leitores, sendo um eterno favorito ao Nobel de Literatura – mas isso é assunto para o mês que vem.
Entre as idas e vindas do meio, parte fundamental do nosso radar afiado desde Outubro de 2021, introduzimos mais um Estante do Persona. Na companhia de outros trabalhos literários louváveis que a nossa Editoria selecionou para as indicações do mês, finalizamos o primeiro ano do Clube do Livro de olho no que vai terminar de definir a Literatura em 2022.
Livro do Mês
Andréa del Fuego – A pediatra (160 páginas, Companhia das Letras)
Em A pediatra, terceiro romance de Andréa del Fuego, a superficialidade das relações e a ética envolta no cotidiano são colocadas em xeque. Cecília, a protagonista, é o oposto do que se imagina de uma pediatra: uma mulher sem “espírito maternal”, quase nenhum interesse por crianças e mínima paciência para outros adultos. Ao desenrolar da trama, ela fará, então, um mergulho investigativo na vida das mulheres que seguem o caminho do parto natural e da medicina alternativa, práticas que despreza profundamente. Em paralelo, vive uma relação com um homem casado, Celso, cujo filho, Bruninho, ela acompanhou o nascimento como neonatologista. É esse menino que irá despertar sentimentos nunca antes experimentados por ela.
Andréa del Fuego retoma, com este romance, sua escrita áspera, direta e seca. Nesse livro, o seu cuidado com a linguagem reflete a personalidade de Cecília, que tende a ser pragmática e realizar seus interesses acima dos demais. Ironicamente, é toda essa sua força, sarcasmo e ironia que demonstram, posteriormente, o quanto é uma pessoa frágil. Como um dos fortes concorrentes ao Prêmio Jabuti em 2022, o romance evidencia toda sua força através de uma escrita intensa. “Eu não estava livre do Bruninho, como tinha me livrado de tudo que ousava me extorquir”.
Dicas do Mês
Abdulrazak Gurnah – Sobrevidas (336 páginas, Companhia das Letras)
Sobrevidas chegou ao Brasil em Março de 2022, sob tradução de Caetano W. Galindo, e graças a parceria com a Companhia das Letras, o Persona pôde ter acesso ao primeiro livro do tanzaniano Abdulrazak Gurnah – vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 2021 – a ser publicado por aqui. O lançamento deu início a série de publicações do autor que a editora deve entregar futuramente. Entre elas, além de Afterlives, estão Paradise (finalista do Booker Prize de 1994), Desertion e À beira-mar (já entregue através da TAG Curadoria aos seus assinantes em Julho). Sobrevidas, porém, é a obra mais recente de Gurnah, publicada originalmente em 2020, e trata-se de uma narrativa apoteótica dos sobreviventes.
Ambientada no começo do século XX, sob a África Oriental Alemã – no interior do que hoje é a Tanzânia –, a obra centra-se em Ilyas, Khalifa e Hamza – centra-se principalmente nos dois últimos –, que se encanta por Afiya (irmã de Ilyas) após chegar na cidade em busca de emprego, depois de ser vendido pelo próprio pai a um fazendeiro e fugir. Ao mesmo tempo em que Gurnah cria personagens fortes, ele evidencia suas vulnerabilidades originadas na opressão do colonialismo – a qualquer momento, tudo pode ruir. Partindo de histórias comuns, Abdulrazak Gurnah joga luz sobre as consequências devastadoras da violência na vida cotidiana de todo um continente.
Mesmo escrito originalmente em inglês, o escritor mantém elementos de uma abordagem descolonial ao inserir palavras “não traduzidas” para o idioma (schwein e washenzi, por exemplo). Essa estranheza é um dos objetivos estéticos do autor, e é respeitada na tradução de Galindo, que as mantém como a forma original. É, porém, ao fim que toda a potência de Sobrevidas é catarticamente revelada: o encontro entre Hamza e Khalifa humaniza indivíduos que foram massiva e historicamente desumanizados. – Bruno Andrade
Kiera Cass – A Seleção (363 páginas, Seguinte)
America Singer é aquela menina diferente que nunca sonhou em ser princesa ou disputar o coração de um homem pela coroa, mas ela também é alguém que faria qualquer coisa para agradar a sua mãe, até mesmo se inscrever em um concurso ao lado de 34 garotas ambiciosas pela chance de se tornar a esposa de um futuro rei. Sem acreditar na possibilidade de ser escolhida como participante, a protagonista de A Seleção vive um dos melhores clichês da Literatura juvenil que, com a sagacidade de Kiera Cass, impactou permanentemente uma geração de leitoras.
Lançado em 2012, o livro completa 10 anos de ampla presença no mercado editorial, afinal, graças ao grande público, o feito de Cass se tornou uma saga composta por 9 livros e alguns contos, todos ambientados no mesmo contexto utópico pós-Quarta Guerra Mundial. Ainda que as obras sucessoras não tenham o mesmo mérito de seu original ou que a adaptação para o audiovisual seja uma incógnita constante, uma coisa é certa: com A Seleção, histórias de princesa nunca foram tão populares e, depois dela, as trajetórias de jovens leitoras pela Literatura não foram mais as mesmas. – Nathalia Tetzner
Jasmine Warga – Meu coração & outros buracos negros: Uma faísca pode mudar tudo (312 páginas, Rocco)
Meu coração & outros buracos negros conta a história de Aysel, uma adolescente de 17 anos que não consegue mais ver sentido na vida. Oprimida por um crime cometido pelo pai há anos, a personagem sente culpa e medo por um erro que não é seu. Encurralada por caminhos sem saída, a jovem vê no suícidio a resposta para todos os seus problemas. Na busca por um jeito de morrer, sua trajetória acaba sendo iluminada por sentimentos doces e uma nova perspectiva. Traduzido no Brasil por Petê Rissatti, a obra traz a tona tópicos sensíveis do cuidado com a saúde mental, enquanto deixa um rastro de esperança no coração dos leitores.
É em um fórum de internet que Aysel encontra Ronan, e os dois definem uma data para cometerem o ato juntos: 7 de abril. A partir disso, a narrativa começa uma contagem regressiva em que os dois se encontram regularmente. Os encontros são marcados pelas confissões de Ronan e, para Aysel, ver um garoto bonito e popular com dores tão profundas quanto as dela é um impacto. Quando a personagem finalmente se sente confortável para expor seus fantasmas, os dois acabam em uma aventura para resolver histórias mal terminadas. O clichê dos protagonistas se apaixonando toma conta do enredo, mas mantém o foco nas transformações íntimas e essencialistas de cada um. Com um texto leve e sensível, o livro de Jasmine Warga mostra que em volta de todo buraco negro existem milhares de estrelas brilhantes. – Jamily Rigonatto
Annie Ernaux – O lugar (72 páginas, Fósforo)
Annie Ernaux tem um compromisso visceral com a memória. Em um exercício que ressoa em sua prática de revisitação de arquivos em Os Anos de Super 8 — sua estréia enquanto co-diretora — inaugurado nas telas brasileiras graças à 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o romance O lugar repassa fotografias, corrige-se e remonta-se diante do leitor em uma tentativa da autora de destrinchamento de uma relação após a sua morte de seu pai. Ernaux e seu estilo autosociobiográfico já passaram pelo radar do Persona, no entanto, em La Place — título original do livro — tal estilística é intensificada na análise do abismo de classe que a separa do patriarca, um homem da classe operária francesa. Com seus parágrafos curtos, o texto é uma visualização não linear de diversas imagens que constituem um supercut literário de memórias e reflexões sobre os mundos que apenas alguns podem pertencer.
Na escolha por uma narração que se intercede o tempo inteiro no seu próprio contar, para se esclarecer de uma metodologia da qual utiliza — de imparcialidade e sem intromissão de nostalgia —, surge em um ímpeto não de inibir a emoção, como pode parecer. Mas sim de tentar ao máximo não contornar a verdade, e trazê-la com toda sua potência para tentar capturar o espaço vazio que assola as principais personagens, mesmo com a ação antagônica do esquecimento. No livro, Ernaux discursa sobre a intersecção das relações de classe com a esfera íntima, psicológica e emocional; algo não comum diante de uma atual generalização de perspectivas macroscópicas no pensar dessas tensões. Em O lugar reside uma brutal incomunicabilidade, onde a escrita se constrói enquanto uma prática de se dizer no silêncio, um não-diálogo entre dois mundos distantes em tortuosa tentativa de aproximação. – Enzo Caramori
Bernardine Evaristo – Manifesto: Sobre nunca desistir (232 páginas, Companhia das Letras)
Quando Bernardine Evaristo levou para casa o Prêmio Booker em 2019, dividindo o troféu com Margaret Atwood, a vitória era mais do que sonhada: a escritora sempre desejou ganhar a honraria, mas nunca deixou seus trabalhos se encaixarem em um molde apenas para fazê-lo. Em Manifesto: Sobre nunca desistir, de 2022, a autora remonta sua trajetória da infância até se encaixar nos mais altos escalões da Literatura mundial, em um livro de memórias que mistura relatos pessoais e suas conclusões práticas, baseadas em suas vivências.
Filha de mãe inglesa e pai nigeriano, e vivendo em uma casa de classe média baixa em uma vizinhança branca na Inglaterra, Bernardine narra seu processo de amadurecimento, experienciando a vida apesar do racismo e do machismo, e refletindo sobre sua própria origem e identificação. Os sete capítulos de Manifesto se dividem entre os temas que norteiam a trajetória da autora. Construindo pontes entre os tópicos que levanta, a responsável pelo elogiado Garota, Mulher, Outras destrincha a história de sua família e infância, os lugares pelos quais passou e morou e “as mulheres e os homens que vieram e se foram”, em uma seção dedicada a explorar a descoberta da sexualidade.
Adiante, Evaristo adentra o terreno do seu próprio trabalho. Arte e política, sua própria Literatura não convencional e em constante transformação, educação e influências, ativismo e seu Eu após os anos de caminhada fazem da obra um verdadeiro panorama de quem é e o que pensa uma das escritoras mais importantes da contemporaneidade. Com a tradução de Camila von Holdefer, Manifesto: Sobre nunca desistir oferece mais uma das camadas da linguagem da inglesa, que, tendo passado pela ficção e pela poesia, encontra solo fértil em suas memórias, tão reais quanto podem ser. – Vitória Gomez
George R. R. Martin – Fogo & Sangue – Volume 1 (664 páginas, Suma)
Em 2018, pouco antes da adaptação televisiva de sua grande saga literária chegar ao fim, George R. R. Martin resolveu reeditar um material já publicado: a história da dinastia Targaryen. Antes reunida no enciclopédico O Mundo de Gelo e Fogo, os pormenores do reinado dos valirianos, que durou duzentos anos, ganham roupagem mais encorpada em Fogo & Sangue, livro que cobre a ascensão de Aegon, o Conquistador até o início do governo de Aegon III, Desgraça dos Dragões. Uma eventual continuação já está nos planos do escritor, dando seguimento aos anos históricos até a morte de Aerys II, o Rei Louco e a Rebelião de Robert, que dá o pontapé para As Crônicas de Gelo e Fogo.
Sendo adaptado pela HBO através do seriado A Casa do Dragão (House of the Dragon), o livro voltou à boca do povo, em especial pelas mudanças na produção para as telinhas. Acontece que, como bom compilado histórico, Fogo & Sangue é contado pela narração de uma quantidade pequena de fontes, longe do material denso que Martin despeja na Guerra dos Tronos e seus capítulos em ponto de vista. Aqui, sob tradução de Leonardo Alves e Regiane Winarski, os acontecimentos são contados como numa apostila de História, sem a emoção e a garra de eventos memoráveis da saga mãe. Martin faz uso da impessoalidade para enriquecer sua vasta mitologia e, no caminho, brincar com os dragões que criou no passado que, na trama de Dany, Jon e Cersei, não passam de lendas distantes. – Vitor Evangelista