Giovanna Freisinger
“Esta não é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, ou eventos reais, é intencional.”. É com esse recado que se iniciam todos os episódios de Enxame, o novo acerto do Prime Video. Das mentes de Janine Nabers e Donald Glover, que trabalharam juntos na aclamada Atlanta, o curto seriado com sete episódios é mais um projeto ousado e provocante para o par, que decidiu explorar uma temática que pisa no calo de muitas pessoas, com assassinato, sexo, música e… Beyoncé?
A narrativa acompanha a distorção da realidade na mente de uma fã obsessiva, a jovem Dre, interpretada pela excepcional Dominique Fishback. A obra discute a organização e atividade de fandoms (grupos de fãs), sobretudo na internet, e as relações parassociais nocivas que podem se formar a partir desse engajamento com alguém, essencialmente, desconhecido.
Não é incomum a dedicação extrema a um ídolo se desdobrar em um superprotecionismo, que impulsiona essas pessoas a atacarem qualquer hater que critique o objeto de seu afeto, por mais vaga que seja a definição para esse termo. Quem ousar dizer publicamente que não gostou do mais novo lançamento de um artista muito famoso, por exemplo, pode se preparar para receber mensagens no mínimo desagradáveis e no máximo violentas.
Em Enxame, essa obsessão escala e toma conta por completo da vida da protagonista, que não consegue separar a sua realidade da admiração pela sua idolatrada diva pop Ni`jah (Nirine Brown) – não tão sutilmente inspirada na figura da Beyoncé. O conjunto dos fãs da cantora, na série, se denominam como ‘o enxame’. Fora da ficção, os fãs da Queen Bey (Bey, que tem uma pronúncia em inglês muito parecida com bee, tradução de abelha) se identificam como beyhive, ou “colmeia da Bey”. Como já sabemos, qualquer semelhança é intencional.
O episódio piloto, Ferroada, garantiu a indicação da dupla criadora ao Emmy 2023, concorrendo ao prêmio de Melhor Roteiro em Série Limitada, Antológica ou Telefilme. Assim como Atlanta, a produção constrói sátiras sociais através de um humor ácido, por vezes absurdo, que alivia um pouco o peso do assunto central. Isso com piadas sagazes como, por exemplo, a personagem interpretada por Paris Jackson (sim, a filha do Michael Jackson) se identificando como preta porque tem um pai birracial e diz que, por isso, seu nome artístico é Halsey – tirando sarro da cantora que já fez declarações polêmicas sobre sua autoidentificação. Ou a personagem de Billie Eilish (cuja atuação é uma agradável surpresa) que lidera uma seita de garotas brancas com discursos caricatos sobre positividade e auto-ajuda.
A realidade se mistura com a ficção em Enxame. Além das óbvias referências à Beyoncé e sua base de fãs, a série se inspira em diversos eventos reais para construir esse mundo. A irmã de Dre, Marissa Jackson (Chloe Bailey), é inspirada em um rumor envolvendo uma garota de mesmo nome, com um destino supostamente parecido com o da personagem. Esses limites são nebulosos. Mesmo dentro do universo fictício, é difícil definir o que é real e o que são projeções da narradora nada confiável. A audiência acompanha os acontecimentos a partir da perspectiva da protagonista, culminando em um final que fica aberto à interpretações.
Apesar da obra não tentar disfarçar os instintos mais selvagens de Dre, rapidamente fica claro que o que nós vemos não é necessariamente o que acontece, e isso não importa. O roteiro de Nabers e Glover se desenvolve em torno do estudo dessa personagem, interessante e conflituosa o suficiente para sustentar a trama. Toda a apresentação audiovisual forja uma atmosfera fantasiosa, parecida com um sonho, que apoia a narração subjetiva. A gravação é toda feita em película, com cores saturadas e a textura dos grãos do filme na imagem, além de elementos como o barulho de zumbidos sempre que algo ruim está para acontecer… ou o enxame está prestes a mostrar o seu ferrão.
A narrativa não segue um padrão de storytelling tradicional. Ao final de Enxame, o espectador é deixado com mais perguntas do que respostas. Não há preocupação da série em apresentar conclusões definitivas. No entanto, temos alguns recursos que nos ajudam a compreender melhor a protagonista, que, ao longo do enredo, segue seus instintos e impulsos sem parar para processá-los. O primeiro episódio acompanha o que parece a sua perda de inocência e o começo da violência. Mais para frente, descobrimos informações sobre o seu passado, que explicam muito suas relações e algumas peças começam a se encaixar.
Dre projeta na Ni`jah tudo aquilo que não é ou não tem, mas gostaria. A cantora representa a aceitação e o acolhimento desconhecidos por ela e é essa questão que fomenta a sua crença de que conhecer a ídola vai resolver os seus problemas. No último episódio, Só Deus cria finais felizes, podemos ver que ela passa a projetar a sua irmã na estrela pop, talvez porque esse era o interesse que as aproximou e elas dividiam, unindo em uma só figura tudo aquilo que mais importa em sua vida.
Ainda assim, não sabemos porque ela age como age. Um exemplo disso é sua relação com a comida, que apresenta uma clara compulsividade, mas não é tratada para além da exposição. A série não se interessa em despir a fã de todos os seus traumas para torná-la mais digerível para o público. Com isso, fica nas mãos da atuação de Fishback elevar a personagem e comunicar a história de maneira profunda. Ela não só dá conta do recado, como entrega uma das performances mais cruas e sinceras do ano, que a colocou na corrida do Emmy 2023, pelo troféu de Melhor Atriz em Série Limitada, Antológica ou Telefilme.
A série não busca um desfecho otimista, muito pelo contrário. Nabers e Glover provaram com essa história que não têm medo de cutucar o enxame da cultura de fandoms e apontar as suas problemáticas, coisa que é pouco abordada na mídia. Enquanto ainda não há registros de casos extremos, como o representado, as características que firmam a relação da protagonista com a cantora são comuns, na internet e fora dela. Se a experiência de Enxame não agregar em mais nada, pelo menos agora você sabe: a próxima vez que te perguntarem “quem é o seu artista favorito?”, pense duas vezes antes de responder.