Leticia Stradiotto
Sempre queremos que a vida siga a linha pontilhada. A plataforma de streaming da Netflix acertou ao investir, no mês de novembro, em Entrelinhas Pontilhadas, a animação italiana com o nome original Strappare lungo i bordi. Com as funções de diretor e roteirista da série, o cartunista Michele Rech, mais conhecido como Zerocalcare, nasceu em Arezzo (Itália), e, mais tarde, mudou-se para Rebibbia, um bairro popular de Roma, no qual estabeleceu uma conexão inextricável. Alicerçado nisso, surgem suas primeiras obras em quadrinhos, como La profezia dell’Armadillo, traduzido para A profecia do tatu, que deu origem ao live action e, agora, consequentemente, à animação.
De início, tudo soa confuso e despretensioso ao ganhar uma sinopse recatada: “Durante uma viagem entre amigos, um cartunista com a consciência personificada em um tatu reflete sobre sua vida e um amor não correspondido”. No entanto, mesmo com apenas 6 episódios de curta duração, o desenho animado sai totalmente fora dos pontilhados e surpreende com um desenvolvimento estimulante. A trama relembra que animação não é sinônimo de infantil. Longe da ingenuidade, é impossível não se identificar com a série ao obter reflexões e emoções profundas encontradas no mundo real. Tudo isso com muitas referências históricas e culturais, do jeito que o jovem adulto gosta.
Entrelinhas Pontilhadas se ampara em uma enorme crise de identidade do personagem Zero – dublado pelo próprio diretor – ao longo de uma viagem com um destino não muito agradável, que será descoberto apenas em seu encerramento. O protagonista encontra vestígios de sua personalidade ao rememorar todas as vivências passadas, auxiliado pelos seus amigos de infância: Sarah e Secco, e também sua própria consciência em forma de tatu. Sem aptidão com sentimentos, Zero conclui que a razão não explica tudo sobre a vida. Viver em linhas tortas é necessário e, praticamente, inevitável.
Todos os personagens são apresentados pela visão do protagonista, como, por exemplo, Sarah, sua melhor amiga de infância, que passou por todas as fases rebeldes da adolescência ao lado de Zero, e, agora, luta para se tornar uma ótima professora. E Secco, seu melhor amigo, totalmente desencanado, que em situações difíceis busca apenas uma coisa: sair para tomar um sorvete. Ambos são indivíduos que, também, estão tentando se encaixar no mundo do jeitinho que dá.
Zerocalcare, também ilustrador da trama, aposta em abordagens intimamente complexas, porém, com desenvolvimentos fluídos e corriqueiros. Ao apresentar episódios sobre o embaraçado mundo dos relacionamentos, ainda relaciona o funcionamento de sensações como culpa, valor individual e, logo em seguida, apazigua as enunciações com condutas mais leves. Por exemplo, a cena em que o protagonista vira a madrugada escolhendo um filme e acaba dormindo sem ao menos tomar uma única decisão, tal situação manifesta certa personalização para nós, os telespectadores. De outro lado, a lembrança da escola primária, que se aparenta banal, mas, na verdade, é um belo puxão de orelha sobre a vaidade e a insignificância de problemas individuais.
Em meio às lembranças e análises do destino, o personagem não deixa de mencionar seu encontro com Alice, uma garota que conheceu em uma festa punk rock e, desde então, tornaram-se grandes amigos. Apesar de ter sentimentos por ela, Zero é bem desleixado e não identifica detalhes do relacionamento, então, o contato presencial era raro, deixando – quase – tudo entre bate-papos no MSN. Ainda assim, o protagonista demonstra-se gente como a gente. Expressar emoções e empatia está mais ligado às atitudes do que às percepções em si. Às vezes, um abraço e uma companhia para maratonar Gilmore Girls é tudo o que nós, ou melhor, a Alice precisa para sentir-se perceptível.
Entrelinhas Pontilhadas é sobre não ter o controle de tudo. Zero não tem o domínio da sua vida, nem das pessoas ao redor dela, e, mesmo que controverso, também não comanda a própria consciência. A animação fortalece as incertezas da existência e tange como elemento de autoajuda. Embora contenha um humor ácido e extremamente cotidiano, a série aborda assuntos que são primordiais para a reflexão de qualquer telespectador. Queremos que a vida siga a linha pontilhada. Quando, na verdade, estamos rasgando a entrelinha sem olhar, pois temos medo de estar a quilômetros dos pontilhados. E, no fim de tudo, não tem problema romper fora os pontos da vida.