Júlia Paes de Arruda
Os versos poéticos e dançantes das músicas de Enrolados marcaram a geração que viveu as propagandas do seu lançamento, 10 anos atrás, no Disney Channel. Era impossível trocar de canal ao ouvir qualquer canção promocional. Essa paixão, na época, fez a adaptação do conto de Rapunzel superar o sétimo filme de Harry Potter nos Estados Unidos e ganhar o coração dos fãs apaixonados pelas histórias de princesas Disney.
A narrativa é focada na história de Rapunzel (Mandy Moore), uma jovem confinada numa torre com longos cabelos loiros, que se debate com o bandido Flynn Rider (Zachary Levi) tentando se esconder da segurança do reino. A fim de seguir seu sonho para encontrar as luzes flutuantes que surgem no dia do seu aniversário, a garota faz um acordo com o criminoso para ajudá-lo a escapar em troca da aventura luminosa.
Mesmo tendo muitos aspectos em comum, Enrolados se difere do conto original de Rapunzel, organizado e publicado em 1815 pelos irmãos Grimm. O aprisionamento da menina é a chave de ambas as histórias, mas os antecedentes dele são divergentes. A época das obras, obviamente, é a explicação para tal discrepância. A protagonista do filme é destemida e independente, e não demonstra esforço em se defender com uma frigideira quando vê Flynn Rider subir por seus cabelos até a torre. A de Grimm, no entanto, é o retrato da visão da mulher submissa e passiva da época.
A direção de Nathan Greno e Byron Howard (junto com Dan Fogelman no roteiro) nos apresentou uma Rapunzel muito mais audaciosa e criativa. Ela busca sair do cárcere para satisfazer seus próprios anseios e se reencontrar como pessoa depois de anos presa numa torre. No conto, a jovem, mesmo tendo encontros às escondidas com sua grande paixão (um costume “inadequado” para a mulher da época), só se rende a sair do confinamento quando é pedida em casamento. Apesar das duas precisarem de uma representação masculina para realizar a fuga, os princípios delas são antagônicos.
Apesar de Enrolados ter concretizado os ideais feministas, A Princesa e o Sapo (2009) já dava indícios dessa influência. Tiana é o retrato da mulher moderna, que trabalha, luta e conquista seu espaço, apesar de receber críticas e desaprovações, a fim de realizar seus sonhos. Mesmo após se casar com um príncipe, toda a riqueza que acompanha seu novo status não é capaz de fazer com que ela própria compre e comece seu próprio negócio. Rapunzel pode não ter sido capaz de ser empreendedora, mas, ao libertar-se da torre, ela pode sair da sua zona de conforto, enfrentar o mundo e experienciar novas sensações.
O amadurecimento da personagem é o percurso da narrativa em ambas as obras, porém a forma que a Mãe Gothel encara essa situação se difere. Na original, o ápice do crescimento da protagonista é através da gravidez. Como não se sabe a finalidade da vilã permanecer com a garota, a alternativa escolhida é expulsá-la para seguir sua vida. Isso poderia ser uma clara alusão ao destino das mulheres da época que tinham filhos antes do casamento. Já na adaptação, o público conhece as intenções de Gothel com Rapunzel e sabe que o relacionamento das duas não é genuíno, muito menos recíproco. Dessa forma, ela tenta manter a personagem na inocência para que ela não fuja para a verdade (uma espécie de Mito da Caverna moderno), visto na música “Sua Mãe Sabe Mais”.
Recentemente, muitos fãs surgiram com teorias de que Rapunzel já previa em 2011 a pandemia de coronavírus. Obrigados a permanecer em casa com o propósito de não fazer o vírus circular, as pessoas precisaram se reinventar e criar formas de afastar o tédio e, até mesmo, a própria loucura. Quem diria que um dia estaríamos presos dentro das nossas torres, tentando imaginar ‘quando a minha vida vai começar’?
A animação também abre espaço para discutir a humanização dos vilões. A música “Um sonho eu tenho” é o exemplo mais palpável para isso. A fala anterior a canção já é significativa: ‘Eu tive um sonho uma vez’, parafraseada do discurso tão emblemático de Martin Luther King Jr. Entre muitas ‘(…) marcas, cicatrizes / inchaços e varizes’, os personagens vestidos com trajes viking almejam sonhos totalmente fora do padrão ‘malvado e violento’, como ser decorador e florista. Há, ainda, os que têm hobbies considerados femininos como o apreço à unicórnios, tricôs e à moda. O clichê ‘não levar pela aparência’ é válido para a trama, uma vez que a verdadeira vilã é a Mãe Gothel, a qual foge do completo estereótipo de ‘brutos, maus, golpistas e grotescos otimistas’.
O próprio Flynn Rider (na verdade, José Bezerra) é outro exemplo de levar pelas aparências. O “príncipe” da vez, na verdade, não é nobre e muito menos rico. Ele se aproxima da realidade ao se mostrar um garoto órfão que, por sonhar com melhores condições de vida e muitas aventuras como nas histórias que escutava, acaba entrando na vida do crime.
A fotografia do filme (responsabilidade de Alan Menken) é magnífica, toda trabalhada em tons de amarelo e roxo. O significado das duas cores se complementam já que uma remete ao sentimento de alegria e de otimismo, enquanto a outra reafirma o sentido de realeza, muito ligado ao conceito de espiritualidade. Todas essas ideias transparecem nas cenas, mesmo que seja de forma subliminar.
A caracterização da personagem, com cabelos loiros e vestido lilás, é a mais clara: Rapunzel é a junção de todos esses sentimentos, principalmente na situação em que fica em dúvida se sua saída da torre é motivo de alegria ou não. O lado místico vem do poder curativo de seus cabelos, adquiridos de uma flor agraciada com um poderoso raio de luz solar. Essa combinação de cores promove, também, o ápice de toda a trama. Vejo, enfim, a luz brilhar marca o propósito da aventura do casal. Os tons de roxo e amarelo ficam mais evidentes, principalmente pelo contraste das luzes com o mar e o céu.
Ainda sobre a espiritualidade das cenas, as lanternas remetem a uma cerimônia real que ocorre na Tailândia. O Festival das Lanternas é um evento dedicado a Buda e surgiu como um meio de libertar todo o sofrimento e levá-lo para longe. No filme, elas são uma forma do reino homenagear o aniversário da princesa perdida e confortar o coração de todos. A combinação da cena com a letra da música é encantadora e aquece o coração de quem a ouve. É quase impossível não se apaixonar por todo cenário, ainda mais porque o relacionamento romântico entre as personagens se mostra cada vez mais concreto.
Graças à Enrolados (Tangled, no original), os lançamentos seguintes como Frozen e Moana puderem beber do mesmo conteúdo e trazer protagonistas mais coerentes com o mundo em que vivemos hoje. Em ambas as produções, a figura masculina já não é fundamental e torna-se coadjuvante. O heroísmo das princesas, mesmo ligada a certo tipo de magia, estão vinculadas ao seu poder de audácia e da perspicácia. O fato de serem independentes já é um grande salto em relação aos primeiros filmes como Branca de Neve e os Sete Anões e A Bela Adormecida. É inegável ver como o pensamento da época influencia o caráter mercadológico das produções.
Além das animações, os live-actions de Aladdin e Mulan também apostaram nessas ideias. Mesmo com mudanças de roteiro, a interferência delas enriqueceram as produções e as tornaram mais realistas. Jasmine cantando Ninguém me Cala e Mulan liderando o batalhão imperial são as referências mais explícitas de citar o empoderamento de forma sutil e nada forçada.
Dessa forma, a magia por trás de toda princesa é ser real e agir por ela mesma, sem perder sua essência para que possa atingir seus princípios. Apesar de Rapunzel ter ficado com medo de ir atrás dos seus sonhos, sua ambição e a voz do seu coração foram mais fortes que o medo da decepção. Pode-se dizer que agora, ‘tudo é novo, pois agora eu vejo/é você a luz’.