Anna Clara Leandro Candido
A família Holmes vive há séculos no imaginário e coração de muitas pessoas ao redor do mundo. Sherlock, o personagem criado por Sir Arthur Conan Doyle em 1887, já viveu inúmeras histórias e foi interpretado por diversos rostos, tornando-se uma figura amada do público. Foi sua influência que inspirou Nancy Springer a criar a irmã mais nova do famoso detetive, Enola Holmes. Agora, a história da caçula foi adaptada a um filme pela Netflix, trazendo uma narrativa não muito original, mas divertida, envolvente e repleta de assunto importantes para se refletir.
A história começa na manhã do décimo sexto aniversário de Enola que, ao acordar, encontra a casa vazia e sua mãe desaparecida. Percebendo que ela não vai voltar, a garota contata seus dois irmãos mais velhos, Mycroft e Sherlock Holmes. Enquanto o do meio demonstra certa apatia e desinteresse para com a irmã, o mais velho fica indignado com o modo de vida e personalidade forte da mais nova, querendo, então, enviá-la para uma escola de boas maneiras. Indignada com a posição dos dois, Enola parte em busca da mãe e acaba se envolvendo com os mistérios e perigos que cercam um jovem marquês.
O longa possui um ritmo rápido e envolvente que ajuda a caracterizá-lo como um filme próprio de Enola, não de seus irmãos. O diretor Harry Bradbeer, conhecido pela série Fleabag, usa o carisma de sua personagem principal como o centro da narrativa. Ele aplica a quebra da quarta parede – técnica cinematográfica na qual o personagem olha e interage com a câmera -, para engajar o público e fazê-lo se conectar com a garota. Feito esse que se encaixa bem ao filme e contribui para manter o compasso da produção. Contudo, é uma estratégia que pode não agradar alguns e, quando dosada da maneira errada, compromete o enredo.
Outro ponto alto da produção está na ambientação e trilha sonora do filme. A história se passa na Londres do século XIX, um local em pleno desenvolvimento urbano e social que foi resgatado e adaptado pela equipe de produção para as aventuras de Enola. Já a trilha sonora, assinada por Daniel Pemberton – responsável também por Aves de Rapina – baseou-se nas clássicas músicas de Sherlock e inovou-as completamente para encaixá-las na personalidade espirituosa e aventureira de Enola.
Por mais que a produção tenha uma boa qualidade, com diretores e um elenco de peso, a história em si não é uma novidade. A personagem percorre a típica Jornada do Herói e não possui o maior e melhor mistério para ser resolvido em suas mãos. Entretanto, é neste ponto que Enola Holmes se difere de qualquer outra obra de suspense do famoso detetive. Como ela própria diz ao irmão em uma parte do filme “Eu não quero um mistério, Sherlock, quero minha mãe de volta e as coisa como eram antes”. Deste modo, mesmo que o nome Holmes esteja envolvido no longa e sugere uma grande solução de mistérios, essa é, na verdade, uma história de autodescobrimento, empoderamento feminino e solitude.
Enola, quando escrito de trás para frente, lê-se alone, sozinha, em inglês. Essa é a primeira informação que a personagem interpretada por Millie Bobby Brown, de Stranger Things, dá aos espectadores logo no início da trama. A garota sente-se incomodada com o peculiar significado de seu nome, e o fato de que sua mãe sempre dizer “Você vai se virar muito bem sozinha Enola” não a ajudava a se sentir menos, bom, solitária. É desta maneira que a personagem começa sua aventura: desamparada, perdida e lutando contra o mundo.
Millie Bobby Brown consegue demonstrar ao espectador todo o carisma e personalidade forte que Enola tem a oferecer, assim como seus medos e inseguranças. Sua atuação ao lado de Helena Bonham Carter, intérprete da matriarca da família Holmes, é harmoniosa e ambas conseguem passar o relacionamento maternal entre as personagens. Relação essa que é muito importante para a trama e o primeiro ponto a ser analisado para entender a mensagem final da obra.
Mesmo que a mãe de Enola tenha sempre encorajado ela a ser livre e independente, a menina ainda é uma adolescente que quer estar perto da família e ter alguém para se apoiar. Claro, não podemos confundir esse apreço emocional com dependência, pelo contrário, Enola abomina e luta contra qualquer coisa ou qualquer um que possa tirar sua liberdade. Por isso, quando sua mãe vai embora e seus irmãos não a valorizam como um ser pensante e com vontades, ela se sente mais sozinha do que nunca. Contudo, ao invés de desistir, ela vai à luta e decide enfrentar o mundo mesmo sem ninguém ao seu lado, tornando-se um exemplo de empoderamento e coragem.
Durante a jornada, há cinco personagens importantes que influenciarão o crescimento de Enola e serão inspirados por ela. O primeiro é o irmão mais velho da família Holmes. Interpretado por Sam Claflin, intérprete de Finnick Odair na saga Jogos Vorazes, o orgulhoso e mente fechada Mycroft Holmes é brilhantemente retratado em tela. Ele se torna a personificação da sociedade que constantemente tenta domar Enola, além de ser a razão pela qual a menina precisa se disfarçar enquanto foge.
Mycroft é quem possui a guarda de Enola após o desaparecimento da mãe, era ele quem deveria cuidar da garota neste momento tão difícil. Mas, ao invés disso, ele a reprime, julga e tenta mudá-la. A figura do irmão mais velho, a suposta proteção dela, sua própria família, torna-se a primeira ameaça a sua liberdade, assim como a primeira corrente de repressão com a qual Enola precisa enfrentar. Uma algema mais dolorida do que as outras impostas pela sociedade da época, pois vem do próprio irmão, de alguém atado a ela por sangue.
Quantas meninas já não foram julgadas dentro da própria casa e por seus familiares simplesmente por serem elas mesmas? Quantas vezes a mão da sociedade arcaica sob os pais de uma garota impedem que ela cresça e se torne uma mulher com sonhos e forças para lutar sua batalhas, sabendo que terá um lar para voltar com pessoas a apoiando? Essa é a realidade que o personagem de Mycroft representa e traz a tela, um dos obstáculos a ser superado com o decorrer da trama.
Já Sherlock, surpreendentemente bem representado por Henry Cavill, é um caso que se difere ao mesmo tempo em que se assemelha ao seu irmão mais velho. Assim como Enola, ele é uma das peças exóticas que compõe a Inglaterra do século XIX , mas há apenas um único detalhe que o difere da irmã mais nova: ele é um homem. Desde o início de suas histórias, o detetive foi retratado como alguém que não se importa muito com assuntos mundanos ou, seres humanos e suas preocupações no geral. Entretanto, com o tempo, ele passa a se aproximar mais de determinadas pessoas e a entender o mundo e realidade em que estão.
A inteligência de Sherlock constrói sua fama e faz com que a sociedade aceite sua excentricidade, mas nada disso seria o mesmo se ele fosse uma mulher. Pois Enola é muito parecida com o irmão e, entretanto, é caçada e julgada por isso. Em uma das cenas mais icônicas de Enola Holmes, Edith, amiga da mãe Holmes e membro das sufragistas, diz a ele: “Não há esperanças de você entender qualquer umas das coisas que estão acontecendo. Pois você não sabe o que é não ter poder. Política não te interessa, por quê? Porque você não tem interesse em mudar um mundo que te favorece tão bem”.
No início Sherlock é indiferente à irmã que tanto o admira, o que torna muito mais doloroso para Enola quando ela pede por ajuda e é dispensada por ele. Ela, pela terceira vez em um curto período de tempo, é decepcionada por aqueles que deveriam apoiá-la, encontrando-se mais uma vez sozinha. Contudo, a coragem e destreza da garota ganham a atenção, respeito e, depois de um tempo, a simpatia do irmão. Ela se levanta e reclama seu pódio por direito, que está no mesmo nível do maior detetive da história, e faz isso por conta própria.
O terceiro personagem a se envolver na jornada de Enola é o jovem lorde Tewkesbury, interpretado pelo carismático Louis Partridge. O marquês de Basilwether traz em sua bagagem uma grande quantidade de problemas que ele sozinho não é capaz de resolver. O garoto então recorre a ajuda de Enola e fica admirado com a personalidade forte, inteligência e determinação da garota. Por mais que ele fosse uma empecilho em sua busca pela mãe, a jovem Holmes não consegue ignorá-lo e decide salvar o menino.
O encontro entre Enola e Tewkesbury é muito importante para a jornada de crescimento dela. Não só porque ele é a engrenagem chave do mistério que a envolverá, mas também por ser a primeira pessoa que ela conhece a não estar diretamente relacionada com sua família. Ambos encontram um no outro espíritos irmãos: dois adolescentes diferentes do que sociedade da época espera que sejam. Ele é um lorde que ama plantas e estar envolto pela natureza, ela, uma garota que sabe lutar ao invés de bordar.
É por meio da relação com Tewkesbury e o mistério envolvendo-o que Enola descobre algo muito importante sobre si mesma, uma característica dela que a difere até mesmo dos próprios membros da família Holmes. Enquanto a mãe e os irmão deixariam o garoto a própria sorte em prol de um objetivo maior, a garota sente que deve ajudar e protegê-lo. Não porque o jovem lorde vale alguma recompensa ou é a chave para conquistar algo, mas sim porque ele precisa de alguém, e ela sabe como é ser abandonada em momentos de necessidade.
Essa empatia que Enola possui para com os outros é também muitas vezes julgada por seus parentes, incluindo a própria mãe. Não por maldade, mas por medo de que essa sociedade injusta machuque-a e abuse de sua boa vontade. Pois, em tempos nos quais as mulheres não são ouvidas, ser forte muitas vezes significa ser distante emocionalmente daqueles que a cercam.
Edith, a quarta personagem a influenciar a vida da garota diz à ela em determinado momento do filme: “Se você quer viver em Londres, seja forte. Viva a vida. Não porque está procurando alguém, mas porque está tentando encontrar a si mesma”. Ela ensina a Enola o que toda mulher que fazia parte das sufragistas, ou as que buscam subir na vida hoje, sabem: devemos buscar a força que nos motiva dentro de si, não em outra pessoa.
Contudo, Enola também não se limita a apenas esse estilo de vida, ela preza por sua liberdade, sabe de seu potencial, mas nem por isso acredita que deveria desistir de encontrar a mãe e proteger quem ama. Esse conflito acompanha a garota durante boa parte da narrativa e, juntamente com todos os problemas que a cercam, desgastam-na aos poucos.
É na escola de boa maneiras que todos os sentimentos, emoções e acontecimentos chegam ao ápice dentro da menina. Durante uma conversa de Enola com a Senhorita Harrison, a garota percebe que as aulas e regras oferecidas naquela instituição não oferecem liberdade como a diretora alega. É uma prisão, que só poderia ser quebrada com o que sua mãe lhe deu durante os anos: autenticidade e liberdade de expressão. Quando a educadora diz à Enola que nunca a abandonaria, como sua mãe fez, a garota começa a perceber o real significado de seu nome: não é alone de solitária, mas de solitude.
Quando Sherlock a visita na escola, Enola ainda possui a chama de resistência dentro de si, mas os sentimentos conflitantes de abandono e desesperança estão aos poucos consumindo-a. Contudo, vendo o irmão reconhecer seu potencial e ter uma prova do amor de sua mãe, Enola torna-se capaz de dar o primeiro passo no caminho trilhado por ela e mais ninguém.
Enola Holmes é um filme de mistérios, aventura, feminismo e autodescobrimento, mas principalmente sobre solitude. No fim, essa é a principal mensagem da obra, descobrir quem é e ser capaz de se sentir completa mesmo sem a presença de mais alguém ao seu lado.
Uma importante mensagem para o mundo atual, que está passando por uma pandemia e precisa da população em isolamento social. Ser capaz de conviver com as pessoas que te cercam, mas sem depender delas para ser completo. Encarar um dia, uma casa ou um passeio sozinho sem necessariamente se sentir só. É essa a mensagem que nem mesmo Sherlock é capaz de passar em suas obras, mas sua irmã o faz com excelência.