Guilherme Machado Leal
A música Xibom Bombom do grupo As Meninas é marcada pelo padrão de vida de pobres e ricos. Nela, os versos “Quero me livrar dessa situação precária” e “onde o pobre cada vez fica mais pobre e o rico cada vez fica mais rico” explicitam um tema recorrentemente abordado na cultura brasileira: a desigualdade social. Produtos audiovisuais sobre esse assunto são vastos, mas o que diferencia Vai Ter Troco de tudo que já foi explorado? O filme dirigido por Maurício Eça (A Menina que Matou os Pais) é centrado em duas protagonistas carismáticas: Tonha (Evelyn Castro), uma mulher com pavio curto, e Zildete (Nany People), uma senhora dócil e piedosa. Juntas, elas trabalham na casa dos ricaços Sarita (Miá Mello) e Afonso (Marcos Veras) – um casal superficial à décima potência.
São esses quatro personagens que ditam a relação entre patrão e empregado durante os quase 90 minutos do longa. Tonha e Zildete estão há meses sem receber e vivem dias de cão na mansão de seus chefes, que a todo custo adiam o pagamento. Após observarem a vida luxuosa dos dois, elas decidem cobrá-los e, sem sucesso, são humilhadas e forçadas a trabalharem a troco de nada. É nesse ponto que a mais nova comédia nacional apresenta a sua vantagem: as incoerências entre o que os patrões dizem e fazem, algo visto até mesmo fora da ficção. Com dois filhos extremamente fúteis, vividos pelos talentosos Nicholas Torres e Giovanna Grigio (As Five), a família privilegiada tem o seu mundo virado de cabeça para baixo quando o patriarca é preso por corrupção.
Por conta do crime cometido, os funcionários são interrogados ao longo da história, que é contada em flashbacks e se utiliza desse tipo de narrativa para criar situações de humor. A partir do momento em que o patrão vai preso, as personagens optam por tratá-los como realmente são: pessoas desprezíveis. As passagens entre os dias de trabalho na mansão e o interrogatório podem ser ainda mais aproveitadas com a direção de Eça. Compras em marcas renomadas, aplicações de preenchimento labial e vida de influencer são três das inúmeras regalias observadas por Tonha e Zildete. Para ambas, é inconcebível a desproporcionalidade entre o trabalho árduo feito e o tratamento recebido pelos patrões.
Com o ótimo tempo de comédia, pela sua experiência no famoso Porta dos Fundos, Evelyn Castro entrega ao público uma personagem principal relacionável e genuinamente engraçada. Isso, no gênero das comédias brasileiras, é custoso encontrar devido aos estereótipos explorados de pessoas pobres. No entanto, por mais que haja atores conhecidos pelo seu trabalho no humor, o texto não consegue aproveitar o elenco, já que algumas piadas são espremidas até onde não devem, a fim de divertir o público. Em diversos momentos de Vai Ter Troco, há a linha tênue entre ‘estou rindo por que é engraçado?’ e ‘estou com vergonha disso, pois não tem graça alguma’. O espectador é levado a rir, mesmo que não tenha vontade.
Aliás, esse ponto específico pode distanciar algumas pessoas da história, dado que é preciso comprar a proposta para não colocá-la na mesma prateleira de filmes como O Candidato Honesto e Até Que a Sorte nos Separe 3, ambos recheados de escolhas desleixadas em suas narrativas. As tramas citadas, por exemplo, fazem sátiras ao cenário político brasileiro, mas é aqui que essa discussão é feita de maneira mais inteligente.
Alinhando termos conhecidos nos últimos anos, como a famosa rachadinha e a delação premiada, com a aparência superficial apresentada nas redes sociais, temos uma história imersa no imaginário daquela minoria da sociedade brasileira – a elite sem escrúpulos do sudeste do país. Focar nesses personagens e nas suas baboseiras torna a obra irônica e afiada no seu texto.
Vale também reconhecer o talento de Edmilson Filho, conhecido por Cine Holliúdy e Cabras da Peste, o ator, de todo o elenco, é o que possui as cenas mais engraçadas. Com tiradas de fazer o público gargalhar, o personagem Nivaldo, motorista de Afonso, é um dos funcionários que também está sem o seu salário pago e, por isso, recorre a um segundo emprego para não ficar no prejuízo. Há uma cena cômica entre Nivaldo e John John (Nicholas Torres) que mostra a diferença entre os dois núcleos principais: enquanto um sempre trabalhou e se desdobrou para ter o mínimo de dinheiro, o outro possui muito para gastar sem nunca ao menos ter colocado o pé para fora de casa. São nessas relações que o longa-metragem se destaca dentre os incontáveis lançamentos nacionais, fazendo com que o espectador se importe com aquelas pessoas.
Um dos motivos para frisar a diferença de Vai Ter Troco no que se relaciona às outras comédias brasileiras é que o filme engloba diversos tipos de narrativa (geralmente exploradas de formas individuais) em um produto só. Há a comédia, mas também possui o tom de dramaticidade que a história precisa. É claro que o clássico brasileiro retratado nas novelas das nove está lá – no entanto com uma malícia vinda das injustiças cometidas pelos patrões. Na verdade, há momentos em que os mocinhos possuem atitudes de vilões, agregando para a narrativa – visto que, se a história se concentrasse apenas em bons vs. maus e patrões vs. empregados, seria apenas mais uma obra cinematográfica já abordada em outros meios.
A relação entre Miranda (Giovanna Grigio) e Zildete pode ser considerada, mais uma vez, uma das tramas que interligam as disparidades sociais. Por ter passado anos da sua vida dedicada a entregar o melhor, a empregada sempre teve muito respeito pelos seus chefes e enxerga a garota como uma filha, mas Miranda pouco se importa com isso. Dessa forma, quando é focado nessas relações interpessoais – vivenciadas por muitos brasileiros -, o longa cresce, indo além de um retrato paródico da população, uma vez que são imensuráveis os casos de funcionários que são mais próximos da família a quem eles prestam o serviço se comparados aos seus patrões.
Apesar dos pontos favoráveis, a comédia tem uma exceção de tramas que, somadas, não resultam em um arco fechado de narrativa. A presença desnecessária de Ludmilla e, mais precisamente, do cantor Falcão, são inúteis e poderiam ser descartadas por completo da edição final. O pouco número de cenas ambientadas nas casas de Tonha e Zildete também contribuem para a falta de coerência com alguns conceitos mencionados no início, mas que são deixados de lado ao longo do desenrolar da trama. Além disso, os diálogos com piadas expositivas afastam o público pelas repetições dispensáveis e pelo exagero de cenas não tão necessitadas de humor.
Com um terceiro ato inusitado e não tão convencional, Vai Ter Troco vale a pena ser assistido em uma tela de cinema. Infelizmente, devido ao histórico de obras carregadas de pré-concepções acerca do imaginário popular, o humor brasileiro é colocado em cheque de uma forma muito rigorosa. No entanto, vale a pena soltar as amarras estadunidenses e dar uma chance a um filme inofensivo, como fazemos – mais do que imaginamos – com os selos que vêm de Hollywood. Às vezes, o tradicional feijão com arroz, contado de maneira fiel, é tudo que precisamos. As protagonistas, afinal de contas, deram troco em seus patrões? Não há como saber, mas, assim como elas, você também pode pagar para ver e descobrir o final dessa história.