Aviso de Gatilho: Elena pode conter elementos prejudiciais àqueles sofrendo com depressão ou pensamentos suicidas.
Raquel Dutra
O segundo longa-metragem de Petra Costa leva o nome de sua irmã mais velha, a atriz Elena Andrade. Sob a premissa de retratar a história da jovem e os sentimentos que a família conserva por sua memória, Elena toca em debates ultra sensíveis acerca de suicídio e depressão, ao mesmo tempo em que carrega o valor de ser considerada como uma obra marcante da documentarista. No filme, tudo tem um único fim: construir um retrato íntimo e profundo da vida de Elena, que aos vinte anos, tratando de doenças psicológicas e tentado se reerguer de desilusões profissionais, findou a sua própria vida.
Aclamado pela crítica, Elena abriu o caminho para o sucesso que sua diretora encontraria em suas produções posteriores. Com sua estreia no IDFA (Festival Internacional de Documentários de Amsterdã) de 2012, o filme foi premiado como o Melhor Documentário pelo Júri Popular, Melhor Direção, Montagem e Direção de Arte e todos os prêmios na categoria documentário no 45º Festival de Brasília. Em 2014, o filme também foi pré-selecionado para o Oscar 2015 na categoria de Melhor Documentário.
Considerado uma experiência única no Cinema contemporâneo, Elena comprova que trabalhar com questões íntimas faz parte da identidade artística de Petra Costa. Identificamos o traço personalista em sua produção mais recente e conhecida, Democracia em Vertigem, mas desde o começo de sua carreira no Cinema a documentarista faz com que essa característica seja marcada. Neste caso, o tema é ainda mais pessoal, caindo na morte precoce da sua irmã mais velha. O enredo, por sua vez, é desenrolado a partir de registros das vivências de Elena em busca de seu sonho de ser atriz de Cinema, com os quais Petra estabelece um profundo sentimento de identificação.
Numa eterna oscilação entre o objetivo e o abstrato, o prazer e a dor, o real e o ficcional, o pessoal e o universal, Petra dá voz as cartas da sua irmã, refaz seus passos, encenações, revive memórias e até mesmo seus sonhos. É uma brincadeira tão profunda com elementos ditos opostos que, em alguns momentos, eles se tornam surpreendentemente similares. E todos os aspectos do filme trabalham para essa fusão de sentimentos conflitantes, a se destacar, primeiro a trilha. A diretora traz toda a complexidade da música clássica de uma forma tão tátil que se torna simples a rendição do espectador aos sentimentos que a Petra deseja despertar. Alegria e melancolia são os principais, algumas vezes dentro de uma mesma faixa, outras vezes em diferentes, que se conversam maravilhosamente bem.
À fotografia e edição do filme competiam a difícil tarefa de combinar os registros antigos de Elena com as novas imagens filmadas por Petra. Buscando também seguir a mesma linha de conciliação entre os opostos, o visual da produção faz o possível com os filmes antigos e com a harmonização das imagens e cores, mas este é um ponto que deixa a desejar. Entretanto, para reforçar a experiência de imersão no mundo de Elena e seu olhar sobre ela, Petra acerta ao misturar os diferentes registros de forma a confundir o espectador sobre suas autorias. Em muitas imagens, inclusive, o rosto das irmãs se confundiam, e o documentário é repleto destes detalhes sutis que entregam a influência de Elena na vida, sonhos, emoções, medos e personalidade de Petra.
As escolhas arriscadas de roteiro também são características fortes da diretora. Para os efeitos de sentido buscados em um documentário, estabelecer a narração de Elena como um diálogo com a irmã é incomum e falha algumas vezes. Por se tratar de fatos tão íntimos, o espectador, conhecendo apenas o momento, necessita de uma contextualização um pouco mais abrangente. Contudo, a predominância dessa construção de narrativa é admirável porque revela muitos outros efeitos de sentido, como o de não invadir totalmente a intimidade de Elena. Em momentos pontuais, Petra deixa de conversar com a irmã e tira de cena a narração escolhida para dar espaço a curtos (e emocionantes) depoimentos de pessoas que conviveram com ela, como um amigo que esteve próximo da atriz no dia de seu suicídio.
A reconstrução da figura de Elena é um dos aspectos mais surpreendentes no roteiro e no filme como um todo. A diretora caracteriza a irmã de uma forma tão próxima e profunda que acompanhá-la ao decorrer do filme se torna uma experiência aflitiva, impressionante e dolorosa. Durante os 80 minutos, o espectador convive intimamente com as manifestações suicidas da jovem depressiva, repleta de sonhos e decepções. Assistimos através de lembranças esmaecidas a tristeza tomar conta da atriz cada vez mais, sufocando cada respiro de esperança diante da vida. Acompanhamos com pesar Elena admitindo a falta de amor para consigo mesma, exigindo o máximo de si como atriz mesmo não estando saudável emocionalmente, se levando assim à exaustão física e psicológica.
Através de entrevistas com familiares e amigos de Elena, sentimos a dor, o desespero e a preocupação antes, “durante” e depois do suicídio. Petra possui uma capacidade transcendental de criar identificações entre as narrativas, o espectador e ela mesma. Mesmo retratando eventos tão pessoais, a humanidade escancarada dos fatos capta toda a nossa empatia. Sendo este um de seus objetivos ou não, Petra mostra que nossas angústias, dores, belezas, prazeres, necessidades, urgências e fraquezas na verdade podem ser radicalmente convergentes.
Quando lançado, o filme movimentou debates acerca do tabu do suicídio no Brasil inteiro e o mesmo aconteceu quando chegou no catálogo da Netflix no começo de setembro, o mês de prevenção ao suicídio, em 2019. Desde 1990, ano da morte de Elena, o número de suicídios no Brasil teve um aumento de 30%. Hoje, entre os jovens, o suicídio é uma das maiores causas de morte e apresenta um o aumento de 2000%. Falar sobre o assunto livre de tabus nunca foi tão necessário, e segundo as perspectivas, será cada vez mais.
Principalmente quando fora de ambientes privilegiados como o núcleo retratado em Elena, o debate sobre saúde mental precisa ser colocado como uma questão de saúde pública, e por isso, precisamos também enxergar as relações disso com o nosso contexto nacional. Ele é resultado de crises econômicas, altas taxas de desemprego, saúde e educação precarizadas, e as políticas de prevenção ao suicídio perpassam todas essas esferas da sociedade.
O documentário levanta a importância de estarmos atentos aos aspectos não-óbvios do suicídio e de se aprender a lidar com ele e com a depressão. Também é uma obra importante para nos ajudar a debater e esclarecer a linha tênue que difere um retrato sensível da romantização. Como diz a própria cineasta, Elena tem uma história que valia a pena contar. Sem intenção de ser uma biografia, uma homenagem ou apontar culpados. Mas sim conhecer e apresentar várias faces da irmã, sua “memória inconsolável”. Petra também faz questão de a destacar como parte do elenco do longa, honrando seu sonho de ser atriz de cinema.
Além da importância de todo o debate, Elena mostra um movimento belíssimo de criar uma obra de Arte a partir das dores e perdas que nos rasgam o peito, por mais cruéis que elas sejam. Aliás, talvez a Arte seja exatamente isso: a transformação.
No Brasil, o Centro de Valorização da Vida (CVV) promove apoio emocional atendendo gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo, por telefone (discando 188), e-mail e chat 24 horas todos os dias, além de postos de atendimento presencial.
Magnifico documentario. Artistico e verdadeiro.
Voltamos a ver como família,negligenciam os os sintomas da depressão e os seus sinais para a morte.