João Batista Signorelli
Em 1963, o astronauta soviético Yuri Gagarin, primeiro homem a realizar uma viagem espacial, foi à França com uma missão: participar da inauguração de um moderno conjunto habitacional que levava o seu nome, erguido pelo Partido Comunista Francês. Décadas depois, acompanhando o declínio do partido, o enorme edifício sem manutenção entrou em decadência, até vir a ser demolido entre 2019 e 2020, em um longo processo que durou cerca de 16 meses. Em meio à destruição, a dupla Fanny Liatard e Jérémy Trouilh encontrou a delicadeza, que tomou a forma de filme em Edifício Gagarine, filme francês exibido no quinto dia do Festival do Rio 2021.
Youri, um jovem morador do Cité Gagarine que sonha em ir para o espaço, faz todo o possível para manter o edifício em boas condições para que ele não venha a perder o seu lar e sua comunidade. Porém, quando o prédio é encaminhado para a demolição, Youri se recusa a abandoná-lo, transformando a área de alguns apartamentos em uma espécie de micro-estação espacial particular. Para este longa que recebeu o selo oficial do Festival de Cannes em 2020, um evento real abre brechas para a ficção, e o drama social flerta com o realismo fantástico.
Se no primeiro ato do filme vemos a união da comunidade do edifício Cité Gagarine, que se expressa de forma especial na bela cena em que todos juntos observam um eclipse solar, com o passar do longa a vemos se dispersar, desintegrando-se do mesmo modo que o próprio prédio ao ser preparado para a demolição, enquanto o protagonista resiste às transformações. Youri, em dificuldade em lidar com as mudanças, revela traços de autismo, em um retrato sincero e que fala por si só: a inclusão aqui não é utilizada para impulsionar Gagarine, mas encarada com naturalidade para a narrativa. “Para ele”, relatou Jérémy Trouilh em entrevista, “o prédio é como uma espaçonave: se sair, não consegue respirar.”
O flerte com a ficção científica e a viagem espacial não se limita à imaginação de Youri. A trilha sonora evoca sons de espaçonaves e botões de controle, construindo uma atmosfera completamente desassociada daquele bairro periférico de Paris. Em acréscimo, a fotografia engrandece suas locações a dimensões estratosféricas, encontrando a angulação certa para fazer um corredor parecer um túnel espacial, uma máquina em um depósito de sucata transformar-se em um enorme reator, ou um guindaste de obras fantasiar-se de foguete.
Gravado no próprio Cité Gagarine, nos arredores, o longa de estreia dos diretores expande a narrativa que o duo já tinha trabalhado em seu primeiro curta-metragem Gagarine, em 2015. Abrindo um diálogo que vai de Aquarius a Perdido em Marte, Edifício Gagarine parece ter uma relação especial com outro filme francês, a ponto de funcionarem quase como filmes-irmãos. Falo de Swagger, um documentário, que, reunindo um grupo de crianças e jovens da periferia de Paris, apresenta um recorte de suas vidas e visões de mundo, e eterniza algumas de suas imaginações e fantasias na forma audiovisual.
Afinal, o prédio onde habita parte do elenco de Swagger, facilmente poderia ser o mesmo onde Youri vive, o tal Edifício Gagarine do título. Do mesmo modo, Youri com seus sonhos espaciais, poderia indisfarçadamente se passar por uma personagem de Swagger, pois assim como elas, ele ainda resguarda uma pequena dose de inocência, o suficiente para sonhar e projetar-se para além da difícil realidade que impera em seu entorno. Indo mais além, os filmes funcionam quase como um espelho um do outro. Enquanto Swagger é um documentário que constrói cenários ficcionais para representar os sonhos de seu elenco, Gagarine é uma ficção que mesmo subindo um degrau na fantasia, não esquece que está atrelada a um cenário real.
Edifício Gagarine é um belo retrato imaginativo que, mesmo flertando com a ficção e a fantasia em sua forma e estética, nunca se esquece que está intimamente conectado a circunstâncias reais. Sendo capaz de encontrar em meio a essa realidade uma dose de esperança, O final aberto da jornada de Youri nos leva a um breve memorial reunindo algumas das memórias e pensamentos daqueles que deixaram de habitar o prédio para sua demolição. Apesar da ficção nos conduzir a caminhos dos mais imaginários, o fim do Cité Gagarine não poderia ser mais concreto.