Gabriel Oliveira F. Arruda
Lançado em fevereiro de 2021 no Brasil sob o selo da Editora Suma, o título críptico de É assim que se perde a guerra do tempo, de Amal El-Mohtar e Max Gladstone, esconde tanto a simplicidade quanto a grandiosidade de sua narrativa romântica espaço-temporal. Parte épico de ficção científica, parte romance epistolar, o livro vencedor dos prêmios Locus, Nebula e Hugo narra a correspondência ilícita entre Red e Blue, espiãs inimigas de futuros rivais, e as batalhas travadas secretamente ao longo do tempo para a conquista desses futuros.
Red vem da Agência, uma distopia tecnocrata em que ela é uma engrenagem de um preciso e gigantesco organismo-máquina, enquanto Blue é parte de Jardim, um tipo de consciência coletiva que controla todo o universo e semeia seus agentes pelo tempo. Embora à princípio as duas partilhem poucas semelhanças, ambas iniciam uma troca de “cartas” através do tempo e do espaço, unidas apenas pela solidão e alienação que sentem por seus respectivos times.
Da maneira com que seus autores os descrevem, os mundos passados e futuros de É assim que se perde a guerra do tempo parecem esboços sendo escritos e apagados, sempre em constante estado de mudança pelas mãos de um time ou de outro. Seja descrevendo o culto a um algoritmo pós-apocalíptico ou as passagens de ar por um labirinto de ossos, há uma qualidade poética no texto de El-Mohtar e Gladstone que é difícil de descrever, mas que foi perfeitamente capturada na tradução de Natalia Borges Polesso para a Suma.
Logo, vemos que as únicas constantes deste universo volúvel são suas protagonistas. Presas em suas respectivas missões que podem durar breves momentos ou décadas inteiras, tanto Red quanto Blue acham nas mensagens uma maneira não só de trocar insultos, mas de externalizar ideias que elas antes não tinham com quem compartilhar. É uma prosa extremamente consciente de suas personagens que nunca poupa seus pensamentos. Mesmo separadas por séculos inteiros, cada palavra de uma para outra é sentida como parte de um diálogo atemporal sendo escrito por duas figuras espectrais, nunca pertencendo a um só lugar ou uma só época.
Narrando o salto entre “filamentos” do tempo e a alternância de “Turnos” entre os dois futuros, os autores reconhecem que a descrição desses elementos, que formariam o volume bruto de um livro de ficção científica comum, não tem lugar nesta novela etérea de quase 200 páginas. Ao invés disso, El-Mohtar e Gladstone trabalham muito mais a linguagem e os meios de comunicação entre as duas espiãs, assim como a ideia de conhecer alguém através da distância e do tempo, uma experiência que os dois partilharam antes de decidirem escrever o livro. O fato delas estarem em lados opostos de uma guerra pelo próprio tempo é apenas a cereja do bolo.
A guerra em si nunca entra em primeiro plano, embora nem por isso seja ausente: essa não é uma história sobre grandes confrontos interestelares ou armas que disparam ao contrário, mas sobre como essa guerra desumaniza as duas agentes, psicológica e fisicamente. O livro até mesmo começa, ironicamente, no rescaldo de uma dessas batalhas, com Red apreciando seu trabalho em um mundo prestes a se extinguir: “Uma vez que as tiras de pseudopele se arranjam e se curam e a matéria programável de suas roupas se costura de volta, Red volta a parecer vagamente como uma mulher.”
Através de cartas escondidas dentro de vulcões em erupção e jarras com água fervente, as duas formam um repertório repleto de provocação e sarcasmo, com ambas sabotando e clamando vitória uma sobre a outra, até que as barreiras que as separam comecem a ruir, e a simetria de suas experiências comece a vir à tona. A partir daí, as palavras de cada uma assumem um tom cada vez mais pessoal e dolorosamente sincero. De repente, “Me diga alguma verdade ou não diga nada” se torna:
“Quero te contar alguma coisa sobre mim. Alguma verdade, ou nada.
Da sua,
Blue”
O texto de cada uma das cartas é tão ricamente escrito que a substância de ambas as personagens se torna palpável, do jeito que elas se endereçam até a maneira com que estruturam suas frases. Atrás da racionalidade e da frieza de Red, há uma ânsia por se conectar com alguém e, por trás das palavras de leveza e humor de Blue, há uma melancolia trágica e irreparável. O encontro dessas duas pessoas no tempo e no espaço torna-se então mais do que uma simples coincidência, mas um genuíno milagre.
“O que eu vou fazer, céu? Lago, o que eu faço? Pássaro azul, íris, ultramarina, o que pode vir agora que isso está feito? Mas nunca vai acabar – essa é a resposta. Sempre há nós.”
É assim que se perde a guerra do tempo não é tanto uma história de amor quanto uma história sobre o amor. Sobre sua improbabilidade, sua volatilidade, sua crueldade, sua doçura. Quando Red escreve sobre matar os poetas e tomar seus lugares, para que “toda vez que o amor for escrito, em todos os filamentos, será para você”, somos lembrados de que a beleza dessas histórias está em como o sentimento do amor ecoa invariável e impossivelmente através das eras, mesmo que em todo filamento (ou livro) ele seja um pouco diferente.
“Se Blue fosse uma acadêmica – e ela já interpretou esse papel o suficiente para saber que adoraria ser -, ela catalogaria, em todos os filamentos, um extenso estudo dos mundos nos quais Romeu e Julieta é uma tragédia, e nos quais é uma comédia. Ela adora, toda vez que visita um novo filamento, assistir à peça sem saber como vai terminar.”
E talvez essa seja a beleza de todas as histórias. Que, não importa o quanto nós achamos que a conhecemos, o futuro ainda é incerto. E mesmo quando sabemos o que está para acontecer, nos fazemos acreditar que talvez, só talvez, não importa quantas vezes uma trama se repita, ainda haja chance de mudá-la. As boas histórias nos fazem acreditar que tudo é possível, mas as melhores nos fazem implorar para que realmente seja. E esta é uma delas.