Ernesto Rangel
A mais nova adaptação da obra-prima Duna, escrita por Frank Herbert, chegou aos cinemas com uma grande responsabilidade em suas mãos: agradar aos fãs do livro, de 1965; corrigir os erros da primeira adaptação cinematográfica, de 1984; e ainda conquistar um novo público que nunca ouviu falar da saga em 2021, apesar de sua contribuição massiva para a ficção científica. Uma avaliação do filme deve se estender por esses três aspectos, nos quais o longa se apresenta: como adaptação de uma obra literária renomada; como remake de um filme falho; e como uma nova produção, lutando por espaço na cultura atual. É necessário ainda dedicar algumas passagens às qualidades necessárias para todo bom longa-metragem.
Quando se trata de transportar para a telona a trama de livros renomados, os desafios são muitos. Primeiramente existem os fãs que, em suas leituras, idealizam os cenários e as personagens dentro de suas perspectivas pessoais, fazendo com que seja quase impossível agradar a mais do que uma pequena quantidade deles simultaneamente. Existe ainda a questão da arte: o diretor, como artista, deve priorizar a fidelidade com a obra original ou a sua originalidade própria? Além disso, não podemos esquecer da tecnologia da época, que pode ser insuficiente (e era, na primeira adaptação oficial para as telonas) para apresentar a realidade retratada em um livro (veículo que se limita apenas pela imaginação).
Até mesmo títulos que conseguiram se tornar referência no quesito, como O Senhor dos Anéis, de Tolkien, ainda apresentam derivados (O Hobbit) que deixam a desejar. Além disso, existem uma gama de exemplos desastrosos disponíveis para a apreciação de todos aqueles dispostos, como as aventuras na telona de Percy Jackson, de Rick Riordan, ou ainda a tragédia em vinte e quatro quadros que foi a saga de A Torre Negra, de Stephen King, nas telas de cinema.
Os fãs podem respirar aliviados, pois por ser ele mesmo um deles, Denis Villeneuve foi extremamente fiel à obra original. É discutível se a materialização feita por ele foi aquela que agrada ao maior número de espectadores. As bilheterias foram soberbas (mesmo com o lançamento simultâneo nos cinemas e nos serviços de streaming do HBO Max, que canibaliza os números angariados) e, juntamente com o feedback que podemos encontrar nas redes sociais, é possível inferir que Duna atingiu uma grande aceitação entre o grande público, inclusive os fãs.
Para essa adaptação em específico o diretor, com certeza, precisou evitar produzir um filme que parecesse uma cópia dos títulos de Guerra nas Estrelas, que hoje são referência no gênero da ficção científica. Duna, de fato, compartilha a temática com essas produções, porém, é ancestral delas. George Lucas é um fiel discípulo de Frank Herbert e se inspirou profundamente no livro de Duna para a criação de seus longas, e podemos citar muitos paralelos entre as obras, como: Arrakis, o planeta que dá o nome a Duna e Tatooine, o planeta natal de Anakin, são ambos desérticos; Paul Atreides e Luke Skywalker, são superficialmente ambos os escolhidos; O Imperium, de Duna, e o Império Galáctico, de Star Wars; entre muitos outros. Por sorte, ou mérito do diretor, Duna escapa de parecer uma cópia, mas as comparações serão inevitáveis.
Na trama tecida por Frank Herbert, temos uma ficção científica repleta de complexidade, com relações religiosas, sociais e políticas únicas. Assim como são vastas as realidades de Nárnia e Westeros, também é a de Arrakis. O livro que inspirou o filme é massivo, fazendo com que comportar a apresentação adequada de todos os componentes do universo fantasioso de Duna em um filme de duas horas e meia de duração seja uma tarefa, no mínimo, trabalhosa.
A trama gira em torno do, já mencionado, Paul Atreides. Herdeiro de sua casa, ele acompanha a mudança da sede de seu reino (original do planeta Caladan, um paraíso tropical) para Arrakis, um planeta onde a água é tão escassa que seus habitantes desenvolveram costumes associados à mais otimizada preservação de água. A falta da substância essencial à vida humana é compensada pela abundância em mélange, também conhecido como “especiaria” (spice), uma substância psicoativa, coletada exclusivamente na superfície do planeta deserto, e que serve como combustível das diferentes organizações que controlam e exercem sua atividade através do universo.
A breve descrição do enredo acima deixa de fora uma série de elementos cruciais ao universo de Duna, como os gigantes Vermes de Areia, as Bene Gesserit, a Guilda Espacial, os Harkonnen, os Sardaukar, entre muitos outros. A primeira adaptação, dirigida por David Lynch nos anos 80, assumiu a responsabilidade de adaptar todo o primeiro livro em um só filme, o que foi desastroso: um roteiro confuso e mal estruturado (sendo justo, cortes na duração e no orçamento foram os culpados por esse resultado), o que reforçou o senso de que a obra de Herbert estava além da possibilidade para adaptação.
No novo filme, pela felicidade dos fãs, os roteiristas Jon Spaihts, Denis Villeneuve e Eric Roth não cometeram o mesmo erro e adaptaram para as telonas apenas por volta da metade inicial do primeiro livro. Frank Herbert escreveu e publicou duas trilogias e um conto sobre o universo de Duna, o que já é muito, mesmo não considerando os outros nove livros e quatro contos escritos por seu filho após a morte do pai em 1986. Essa decisão foi acertada e permite um desenvolvimento mais cuidadoso da trama. Mesmo assim, uma crítica muito comum a essa nova produção é como ela deixa o espectador sem entender muito bem o que está acontecendo. Isso é natural e esperado, pois (e aqueles que leram o livro sabem) até mesmo a obra escrita apresenta essa barreira de entrada.
A escolha do elenco é outro ponto a favor da obra. Principalmente por selecionar atores que possuem características físicas fundamentais aos personagens – como os traços aquilinos (finos, retangulares e que guardam muita perspicácia) de Paul Atreides (vivido por Timothée Chalamet). Mesmo assim, ainda contamos com muitas figurinhas carimbadas de Hollywood, como Zendaya, no papel de Chani, e Jason Momoa, no papel de Duncan Idaho. Esse pode ser um ponto negativo ou positivo, dependendo de quem se pergunta. Mas o fato é que a bilheteria que acompanha esses atores deveria ser muito bem vinda pelos fãs que torcem para que a obra prospere no cinema.
Oscar Isaac como Duque Leto Atreides é uma das melhores atuações de todo o longa. A postura que o ator evoca ao vestir a pele do duque mais respeitado do Landsraad (o corpo formado pelas grandes casas) deixa os que assistem arrepiados em diversos momentos do filme. Rebecca Ferguson e Timothée Chalamet também merecem seu destaque. Através da tremenda atuação de Ferguson temos a sensação de ver Lady Jéssica se personificar das páginas do livro para a tela. Coroando essa demonstração das belas artes, temos Chalamet no papel de Paul, uma das escolhas mais acertadas do elenco. O próprio diretor não poupa elogios em entrevistas para a atuação do ator protagonista.
O diretor do longa, Denis Villeneuve, manteve nessa adaptação o seu estilo característico, carimbado por filmes como A Chegada (2016) e Blade Runner 2049 (2019). Inclusive, é muito oportuno comparar Duna com a continuação da história do caçador de androides, visto que ambos são novas instâncias de obras cultuadas e possuem temáticas abstratamente semelhantes: um futuro distópico interplanetário, que esconde em seu cerne o aviso de uma sociedade disfuncional e levanta questões ideológicas.
Na direção a semelhança é ainda maior, ambos os filmes são contemplativos, o que pode ser um ponto negativo para aqueles que vão ao cinema esperando por mais uma dose de ação, como foi normalizado pela popularização dos filmes de super-herói. O foco de Duna não são as cenas de ação (apesar de conter algumas de altíssima qualidade), mas sim a apresentação do extenso universo e dos acontecimentos que se passam com Paul Atreides, que levantam questões extremamente relevantes, como religião e ecologia.
Com o auxílio do cinematógrafo Greig Fraser (responsável pela fotografia de títulos semelhantes, como Star Wars: Rogue One, e alguns episódios da série The Mandalorian), o diretor optou pelas cenas que não economizam na hora de impressionar. Com lindos visuais e a medida certa de cenas com enquadramentos afastados que dão ao espectador a noção da grandeza dos elementos de Duna, o diretor nos fascina: as massivas naves utilizadas em viagens interestelares e os gigantes vermes de areia que aterrorizam o deserto são visões para nos deixar de boca aberta.
A obra ainda é coroada pela trilha sonora de Hans Zimmer, que já emplacou uma série de grandes obras musicais em ótimos filmes, como Interstellar, Gladiador, e muitos outros. O músico, desta vez, nos presenteia novamente com suas trilhas que destacam e ampliam muito bem o sentimento evocado pelas cenas, com músicas sutis e intensas, sempre quando necessário. Além disso, as sinfonias servem muito bem à temática, visto que tiram, assim como a obra original (e o filme por consequência), inspiração das culturas do Oriente Médio.
Por último, mas não menos importante, os efeitos especiais são de cair o queixo. Um dos grandes defeitos de muitos CGIs (inclusive os milionários dos blockbusters) é a falta de cuidado com a iluminação. Quando os personagens em cena são iluminados de uma maneira estranha aos olhos em relação ao fundo cheio de explosões, a cena pode parecer artificial. E não é uma questão de capacidade dos estúdios, mas a crença de que o público não liga e não percebe, o que faz que esse seja um investimento superficial, para os investidores. Esse é um dos grandes desafios da computação gráfica nas telonas. Nesse quesito, e em outros relacionados a efeitos especiais, Duna mais uma vez nos surpreende com sua qualidade.
Por esses e outros motivos Duna de 2021 merece ser assistido múltiplas vezes. Um filme sensacional para quem é fã do livro ou até mesmo do diretor. Uma produção refrescante para quem se decepcionou com o primeiro filme, e ainda uma ótima maneira para se gastar algumas horas, se o espectador quiser apenas o entretenimento de um filme casual. Resta agora ficar na espera da segunda parte, programada para iniciar sua produção em 2022 e chegar às telonas em outubro de 2023, e nos certificarmos se toda a nova franquia vai ter o mérito da boa adaptação ou vai acompanhar, ao hall dos infames, os desastres de franquias como Divergente e Os Instrumentos Mortais.