Vitória Vulcano
O ano de 2017 foi marcado pelo início da mais recente reviravolta a atingir o berço de Lady Gaga em cheio. Dialogando com uma crise de identidade, ou surfando na onda de reinvenções prostradas, o gênero que aprendeu a fazer história dominando o topo das paradas vivia uma representação insossa, desmedidamente guiada pelo instantâneo e fragilmente centrada no sucesso de personalidades masculinas. Então, quando o rap assumidamente superou o pop, todos sabiam que não era questão de longevidade; mas, sim, de poder popular.
Manifestada como frescor musical, Dua Lipa foi um dos dezenas de nomes designados para aguar o tal deserto criativo. Os primeiros singles da inglesa já agitavam as rádios europeias um ano antes, investindo em experimentações que uniam metáfora à melodia. Só que mudar – ainda que minimamente – as rédeas da derrocada do ritmo chiclete exigia se colocar para jogo além do compromisso de nivelar sua estreia na indústria sonora. A típica exploração visual e lírica do pertencimento, responsável por estruturar personas novatas nos acordes, dependia da precisão tomada no processo. Curiosamente, entre formas e testemunhas, a caloura Lipa decidiu pela coragem de se autointitular a nova via do pop.
O desenvolvimento artístico surgiu inspirado na instabilidade do contexto, da humanidade e da própria cantora. Independente e multidisciplinar, a filha do rockeiro Dukagjin reverberava Música desde a flor da idade, e não tinha papas na ambição de projetar uma fluidez de arromba, abrangendo de J. Cole a Nelly Furtado. Nesse avançar deslumbrado, o plano custou um repertório relevante e bem ardiloso: ao todo, 160 canções nasceram para o primeiro álbum da artista, Dua Lipa, e seu lançamento sofreu penosos adiamentos no fuzuê de moldar uma tracklist coesa, próspera e original.
Transitando no espaço igualmente desafiado pela pressão interna da Warner Bros. Records, que fincava o pé na urgência de possuir uma estrela feminina global, Lipa revisitou os calos e as delícias de suas composições repetidas vezes. Além da euforia de se fidelizar nos rascunhos e demos, a britânica tentava vingar seu talento frente a um leque de 40 produtores, até então desconhecidos por ela. Escancarada no minidocumentário See In Blue, a ambientação se blinda da hostilidade quando encontramos o empenho caloroso da leonina e passamos a sonhar com ela.
Nesse clima agridoce, restaurando a sede performática que a colocou no radar, a artista transformou os indícios de perdição em sua própria resistência. Pela carne e pelos ossos, a nostálgica futurista permaneceu se desarmando para sentir as incontáveis camadas do cotidiano. Mais do que lidar com o mundano, ela escolheu seus dogmas. Inadmissível seria não chorar por redenção, restituir sua autoconfiança, ter fé no divino, volta e meia dançar com o diabo. Assimilando o perverso – e por que não o angelical? – do além-túmulo, Lipa, enfim, expurgou o fracasso do estúdio se sagrando onipotência de um universo nada maniqueísta e completamente honesto.
“No princípio, Deus criou o céu e a Terra”, e a Genesis inglesa pretende fazer o esforço servir. Longe de se limitar às referências bíblicas, a introdução usa a simbologia intensa para conduzir um aguardado recomeço: a adolescente temporariamente garçonete e modelo morreu; vida se forma para a presente artista. Aquele empurrão para tornar a premonição, profecia. Tanta energia traz dimensões largas de tato e ritmo, constantes na aura do CD e que ajudam no despontar, em sequência, de Lost In Your Light, Hotter Than Hell e Be The One.
A salada emocional da tríade, integrante do compilado de oito singles da era, denuncia, sobretudo, a interessante translação de sonoridade que Dua lutou para construir ao lado de Axident, Digital Farm Animals e Ian Kirkpatrick – contribuintes chaves da produção. O lirismo de Lipa se desenha pela atmosfera astral de um pop cunhado na progressão de melodias, fonte intimamente guiada pelo timbre único da britânica. Inversa às imitações frágeis e caixinhas, até nos tropeços como iniciante a cantora pretende apagar qualquer camuflagem de si mesma.
Combinadas à exploração de variantes musicais, as alegorias feitas para noites, porres e amantes se refugiam em um diário não-linear e revelam o importante caráter do disco homônimo. Agraciada na montanha russa da fama repentina, a co-autora de 21 das 25 faixas do projeto administrava o auge de seus vinte e primeiros anos. Ninguém se prepara para viver no alcance mundial, e ela só queria aprender a crescer (traço notável, principalmente, na evolução de sua filmografia). Na distribuição sazonal de suas mid-tempos, Dua, então, usa o palco para incorporar o destino, se entendendo pessoa pública, jovem e enérgica. Em Dua Lipa, no amor e na tragédia: o que vale, afinal, é extravasar.
A técnica narrativa da cantora se materializa em cada gancho da obra, refletindo uma alma que ora teme, ora escolhe se ancorar na consciência. Dramaticamente dançantes em Begging e destinando batidas amargas à pungente No Goodbyes, os pensamentos recaem na disposição para juntar as tralhas e arruaçar em Bad Together: “Porque, querido, eu tenho sido má, mas os céus me perdoaram”. E é ousando nesse persistente embalo místico que a transparência de Dua se vicia em esbarrar nas alegrias e feridas da realidade, aproximando o conflito entre o contraditório e o vulnerável.
New Rules, Blow Your Mind (Mwah) e IDGAF, hits explosivos da era, investigam justamente o potencial passional do dilema. De carona nas boas e velhas canções de superação romântica, o marketing tramado foi estratégico: enquanto os arrozes de festa pop estendiam a visibilidade e o impacto da inglesa nos charts, versões Deluxe e Complete Edition de seu disco eram criadas. Em sua maioria pontos reluzentes do trabalho, as faixas adicionais de Dua Lipa investem ainda mais no dinamismo como marca da estreia da artista.
Compartilhando da identidade de BLACKPINK, Martin Garrix e Sean Paul, a inglesa balanceou com destreza a sonoridade dark predominante em suas b-sides e os feats promissores alçados nos horizontes eletrônicos. Foi, inclusive, com a sutileza da variação tropical house que a consolidação internacional de Dua continuou forte. One Kiss, produção de Calvin Harris, pegou firme no gosto mundial e anda rendendo, na atualidade, como hino alternativo do Liverpool. No mesmo espectro, o destaque ficou com a irmã mais velha Electricity, que garantiu a vitória da cantora, ao lado de Silk City, em Melhor Gravação Dance do Grammy 2019.
Versando do caos à integridade e desenrolando-se por quatro anos nos holofotes, o nascimento oficial de Dua Lipa na Música não foi revolucionário. Nada na ascensão da britânica era realmente estranho aos olhos e ouvidos de um consumidor ávido, ou ainda casual do pop. E o maior trunfo do processo é não precisar bater nenhuma dessas pretensões. Em uma época recheada de quases, as novas regras da declarada Artista Revelação foram parte do êxito que salvou as boas intenções que norteavam o inferno musical de 2017. A perspicácia de revitalizar o passado com o ritmo de um futuro só seu. Por fim, ela é coroada a cantora mais reproduzida daquele ano.
Meia década depois, o pop voltou a morar nos pódios junto de muitos nomes profissionais e harmônicos, e Dua continua figurando entre eles; agora, com o saudosismo audaz de Future Nostalgia. Seguindo a linha de sonorizar de cabo a rabo múltiplos mundos e sensações, munida de conceitos implícitos e escancarados, a inglesa conserva o dom da inquietude e da reinvenção lúcida que desejamos cada vez mais nos alto-falantes. Simplesmente porque provar de quem sabe a que veio é especial. Passe o tempo que for, do purgatório ao paraíso, sempre é um prazer cantar Dua Lipa.