Drag Race fecha 2021 com temporadas no Reino Unido, Canadá e Itália, que, embora singulares, se complementam
Vitor Evangelista
Não parece, mas ao longo dos últimos doze meses, RuPaul (junto de suas subalternas estrangeiras) colocou a Coroa de campeã em nove rainhas diferentes, permanecendo no ar por todas as 52 semanas do ano. Depois de analisar seis dessas jornadas, apontando atrativos e defeitos de cada franquia, o Persona inicia sua própria caminhada no campo dos Artigos, trazendo um panorama do fim de 2021 no mundo das drags. Corredoras, deem partida em seus motores e me acompanhem nessa rucapitulação.
Começando pela terceira edição da franquia inglesa, é necessário um breve contexto do cenário da Terra da Rainha. Por conta da pandemia, a temporada 2, agendada para 2020, foi adiada, sendo transmitida no começo do ano seguinte e sagrando Lawrence Chaney no pódio. Em detrimento do contrato com a rede BBC, a companhia de Drag Race precisava veicular o ano 3 ainda em 2021, e assim o fez.
Dando a Chaney o posto de reinado mais curto dentre todas as vitoriosas, em outubro chegou Drag Race UK 3, com um dos elencos mais chamativos do programa. Entre as competidoras, tínhamos a retornante Veronica Green (desclassifica após testar positivo para o covid na season 2), a primeira mulher cis da franquia, Victoria Scone, e duas rainhas de apenas 19 anos de idade (Anubis e Krystal Versace).
Na ânsia de nivelar a qualidade à corrida anterior, RuPaul sofreu com acasos do destino. Primeiro, Green se mostrou inapta a competir, com o emocional afetado pelo isolamento, a falta de dinheiro e trabalho e uma severa depressão. Lado a isso, Scone se machucou no episódio de estreia, fraturando o joelho e sendo impossibilitada de continuar na disputa. Em uma tacada só, no capítulo 3, a apresentadora tinha duas das favoritas eliminadas e um elenco murcho para preencher a cota anual.
A solução foi fazer-nos apaixonar por Versace, jovem de maturidade, mas extremamente polida na arte da maquiagem, dos visuais e da apresentação. Suas falhas, como Kitty Scott-Claus se deliciou em apontar no Roast das Boas Garotas, estavam em todos os demais campos do programa: desafios de atuação, comédia e no Snatch Game. Mas não teve jeito: depois de RuPaul beijar a passarela que Krystal desfilava, se emocionar com suas palavras e confidenciar que ela havia “nascido para ser uma drag queen”, a competição parecia dada como previsível.
Tentando inverter as suposições do público, RuPaul remanejou suas cartas. As doces e adoráveis River Medway e Choriza May foram eliminadas de uma vez só, em uma das piores Dublagens do ano. Quem teimou a ser mandada embora foi Vanity Milan, a única competidora negra da temporada, que lidou com o fardo de representar toda uma minoria, tendo de se provar semana a semana. Suas habilidades não tão avançadas com o pincel de maquiagem se safaram da guilhotina por seu fogo e paixão na hora dos Lip Syncs.
Sem pestanejar, Milan se destacou com uma das Assassinas de Dublagens mais vorazes do ano. Vale ressaltar que sua competição nesse quesito não era muito afiada, e as decisões de salvar a drag sucessivamente iam de acordo com o humor e arbitrariedade da apresentadora. Se em uma semana RuPaul perdia tanto Veronica quanto Victoria, ela necessitava poupar alguém para que o número de episódios não fosse afetado.
Charity Kase e Scarlett Harlett se enfrentaram duas vezes, mesmo que em nenhuma das batalhas o público enxergasse justiça ou um senso de verdade. No fim das contas, as temporadas de Drag Race começam com o roteiro escrito, com as finalistas pré-selecionadas e com a narrativa prontinha para ser assada e servida para a audiência, já acostumada com o formato.
No começo de 2021, Lawrence se apequenou diante de Bimini, que ganhou 4 importantes desafios, só para perder a Coroa no momento derradeiro. No final de 2021, Krystal se apequenou diante de Ella Vaday, que ganhou 4 importantes desafios, só para perder a Coroa no momento derradeiro. Não é uma piada, apenas fatos.
No Canadá, a coisa foi um pouco diferente. Ao contrário do UK, que vinha de uma temporada anterior aclamada, a estreia da franquia do Norte sofreu com julgamentos partidários e uma porção de decisões questionáveis. Depois dos fãs da série desovarem comentários racistas por cima do apresentador Jeffrey Bowyer-Chapman, o mesmo saiu da bancada do programa, assim como Stacey McKenzie (que alegou como motivo da partida um conflito de agenda).
Sobrou apenas Brooke Lynn Hytes, que ganhou a companhia de 3 co-apresentadores: Brad Goreski, Amanda Brugel e Traci Melchor. De cara, o programa encontrou o tom e centralizou tudo na figura de Hytes, fazendo uso dos demais componentes da bancada como adereços, assim como o programa americano faz com Michelle Visage, Carson Kressley e Ross Mathews.
Com a comédia afiada no lado dos jurados, o elenco chegou esbanjando talento e diversidade na arte drag. Chega a ser curioso, entretanto, que o lado cômico das participantes fuja do padrão da franquia: quando veio a hora do Desafio de Leitura, ninguém sabia o que esperar desse bando de não-comediantes. O resultado geral? Uma das melhores Corridas de 2021, junto da espanhola.
Icesis Couture, a eventual campeã, já começou arrepiando, servindo visuais para brilhar os olhos e um carisma muito singular. Se salientaram também sua posição no Desafio do Makeover, quando priorizou o bem estar de sua parceira e caiu nas Piores da Semana tendo ciência do que era mais importante naquele momento. Na verdade, todo esse contexto merece devido holofote.
No Makeover, as drags precisam transformar alguém em sua “familiar”, recriando tanto os looks quanto a atitude. O tema da vez foi Formatura Queer, e o programa convidou 5 jovens que não tiveram acesso a sua própria Prom, tanto por conta da pandemia quanto por serem parte da comunidade LGBTQIA+. Nisso, a temporada ganhou seu episódio mais dinâmico, emocionante e verdadeiro.
Quem venceu foi Pythia, drag natural da Grécia e que usa e abusa do não-binarismo em sua interpretação artística. Cheia de singularidades, a competidora tinha o favoritismo a seu favor (com 2 vitórias e nenhuma aparição no Bottom 2). Tudo mudou nas semifinais, quando tomou parte o episódio de Reunião das drags, comumente posicionado depois dos capítulos competitivos e antes da Grande Final.
Dessa vez, em meia hora, as rainhas lavaram a roupa suja, e na parcela final, foi a vez das 4 drags restantes na competição darem a vida em Dublagens no estilo mata-mata. Na hora do vamos ver, Icesis fez valer seu nome, Pythia tremeu na base e Kendall Gender levou a melhor contra a irmã drag Gia Metric, eliminada na quarta posição. Metric, muito comparada à estética da americana Gigi Goode, não tem um arquétipo mais tão vantajoso ao programa, diferente de anos anteriores, quando a própria Goode, assim como Violet Chachki e Aquaria, eram louvadas por serem esguias e fashionistas.
Com poderes de performance, passarelas refinadas e carisma abundante o bastante para distribuir, Icesis Couture deu início ao reinado do Gelo, vencendo o prêmio e se juntando à Priyanka no panteão canadense das vencedoras. Entretanto, se tratando de uma temporada tão proveitosa, vale a menção á algumas pérolas do elenco: Océane Aqua-Black encantou por sua sinceridade e sua triste história de nascença; a Miss Simpatia Suki Doll trazia frescor ao Ateliê; Synthia Kiss cativou no Snatch Game; Kimora Amour assustou os desavisados no Lip Sync que a eliminou; e Adriana partiu com a promessa de um futuro estrelado.
A saída da sombra do fracasso da temporada de Priyanka, Jimbo e Lemon foi encontrar luz própria. O que por si só virou regra em Drag Race e é evidenciado por essa colagem de Reino Unido, Canadá e Itália, mas em três situações e polos distintos. Ao passo que o UK tentava replicar, com pressa e boatos de episódios gravados em tempo recorde, o sucesso do ano 2, o Canadá fugia de um fantasma ainda recente e o Itália encaixava a Corrida das Loucas para os moldes da TV local.
Com apenas 6 capítulos, mas com durações variando entre 60 e 90 minutos, acompanhar Drag Race Italia foi uma tarefa árdua e quase nada recompensadora. O humor não estava lá, nem o valor de produção esperado para a prima europeia. Faltava gingado, faltava poder de concisão e de omissão. Blocados, os mini-desafios e os desafios maxi se estendiam por tempo demais.
Nem mesmo a presença de palco da apresentadora Priscilla foi o bastante para iluminar uma temporada tremendamente embolada e sem propósito. Às vezes, ninguém ouvia Sashay, Away; às vezes, duas pessoas eram mandadas embora. O ápice da bagunça veio após um intrigante momento de bastidores, com uma raivosa Ava Hangar, puta da vida com as críticas injustas que recebeu, enquanto uma estourada Enorma Jean saiu de cena aos trancos e barrancos.
A tela cortou para uma mensagem escrita, que alegava uma decisão da produção em não mostrar o que de fato aconteceu nas brigas, em respeito aos profissionais envolvidos. No capítulo seguinte, Priscilla quebrou os protocolos e antes da passarela, chamou as duas para Dublarem. Se Enorma Jean desceu o cacete em alguém no Untucked, não ficamos sabendo. O que o show enfatizou, tanto pela postura dos jurados quanto da drag, foi que algo barra pesada tomou parte.
A cerimônia na passarela da Itália era outra das estranhezas da série. Invertendo a lógica das críticas e das deliberações, as drag queens finalistas eram metade desgastadas e metade boas demais para um programa tão mal feito. No fim, saiu vencedora Elecktra Bionic, a primeira competidora da história a ganhar a temporada sem vencer nenhum Desafio principal (ela venceu 4 dos mini, mas nenhum dos maxi). Ao lado de Down Under e da segunda temporada de Drag Race Holland, o spin-off italiano nadou para morrer sem qualquer deleite ou aproveitamento.
Estamos no segundo mês de 2022 e Drag Race já tem um par de temporadas no ar. Quer o destino concretize esse próximo ciclo como um cheio de Corridas novas, o ideal é que as franquias encontrem sua própria maneira de caminhar e sustentar-se no ar. Mais benéfico do que cansativo, o avanço do legado de RuPaul é um avanço da inclusão, da diversidade e da criação de espaços seguros para pessoas queer.
Krystal Versace se tornou a vencedora mais jovem do programa, Icesis Couture provou que estar entre as Piores da Semana mais de uma vez não é um impeditivo para pegar a Coroa e Elecktra Bionic deixou o argumento do histórico na competição definir quem vence comendo poeira. No fim, Drag Race se mantém fiel aos princípios de criação: que a melhor drag queen vença. Ou, no melhor dos casos, a drag que facilmente se adapta ao formato de competição do programa. Com uma fórmula de sucesso em mãos, RuPaul alinha a fábrica, produzindo incessantemente, para todos os gostos, para todos os momentos.