Vitor Evangelista
Não é piada, mas sim um fato, que a segunda temporada de Drag Race UK é a melhor que a competição de RuPaul viu em muitos anos. Dez episódios e uma coroação inédita depois, podemos apreciar os vários altos e poucos baixos do reality. Nessa nova leva teve de tudo, desde eliminações chocantes, desistências icônicas e uma pausa nas gravações por causa da pandemia. Lawrence Chaney ganhou, e o padrão britânico do cenário drag aumentou, e muito.
O sucesso moderado da temporada anterior, lançada em 2019 e que coroou The Vivienne, foi o suficiente para que a BBC Three tivesse liberdade o bastante para pintar e bordar sob a marca milionária de RuPaul. Com os capítulos lançados direto no streaming às quintas, não existia limite de tempo para caber na programação da tevê. Por isso, cada episódio se estendia muito além do padrão norte-americano, beirando os 70 minutos.
O que serviu para o bem e para o mal. Os mini desafios descontraídos eram exibidos na íntegra, fator curioso e instigante a princípio, porém se tornou arrastado lá para o meio da temporada. Os desafios principais também não renderam tanto quanto poderiam, mas o elenco explodindo de talento não encontrou problema em nos entreter. A vencedora Lawrence Chaney encabeçou a lista de queens, evidenciado o frescor que a cena europeia tem no quesito Drag Race.
Ano passado, a versão holandesa do reality serviu talento, fugindo dos arquétipos tediosos que o show americano tem televisionado por anos. De fato, Drag Race UK foi tão bom que acabamos nos referindo à temporada regular como Drag Race US, algo inédito até então. A convergência de exibição dupla, com o UK marcado para as quintas e a 13ª temporada para as sextas, causou a inevitável comparação entre os dois produtos com RuPaul no título.
Algo na concepção das temporadas regulares de Drag Race soa fabricado demais. A equipe de produção, já acostumada com os trâmites do meio, guia narrativas e força coincidências pelo bem do drama, assim favorecendo competidoras ruins e eliminando boas no meio do caminho, visando o retorno futuro no All Stars. Aconteceu com Widow Von’Du ano passado, aconteceu com Denali neste ano, e acontecerá com mais alguém no ano que vem. É assim que o jogo é jogado. No UK, nada disso é válido.
Por mais que, olhando a cronologia da franquia, a 2ª temporada do UK seja a décima e vai lá cacetada do programa de RuPaul, ela ainda é o ano 2 de um spin-off em outro continente. Os fãs podem encarar o legado de The Vivienne, e agora Lawrence Chaney, como a continuação de Yvie Oddly e Jaida Essence Hall, mas não é bem assim. RuPaul preside e apresenta, Michelle Visage continua como sua fiel escudeira e a dupla Graham Norton e Alan Carr substitui bem Ross e Carson, mas a equipe por trás das câmeras é outra.
Não existe necessidade de futricar e inventar injustiças para eliminar a concorrente A e salvar a B. Drag Race UK surpreendeu a todos quando começou a mandar para casa queens aparentemente consolidadas no Reino Unido. Provando, mais uma vez, que ser uma boa drag queen é diferente de ser boa na competição Drag Race. Roxxxy Andrews nunca se deu bem no cenário do reality, mas isso não prova nada além de que ela não se deu bem no cenário do reality.
A eliminação precoce de Joe Black chocou pelo burburinho e pelas expectativas colocadas em cima da rainha do cabaré. Um adendo para a imagem de Joe, que clama ter anos e anos de carreira e parece um pouco com Glenn Close, mas possui a mesma idade de Tia Kofi. Black acabou retornando na volta do covid, mas sua participação no RuRuvision não serviu para nada além de renovar o hall de memes da competição. E, falando no chilique da escolha visual de Joe Black, o momento serviu também para escancarar a confusão de RuPaul.
Logo na estreia, Asttina Mandela venceu o primeiro desafio usando uma jaqueta simplória e ‘tirada do cabide do shopping’. Corta para Joe Black vestindo H&M e a apresentadora dando a bronca das broncas, o que rendeu até um inédito pedido de desculpas. Para colocar em termos nacionais, seria como RuPaul amando e dando a vitória para alguém vestindo um modelito da Riachuelo, mas se rasgando de ódio quando outra pessoa vestiu Renner na passarela.
Quem também se emaranhou nas eliminações prematuras foi Cherry Valentine. A queen, que é enfermeira, foi mandada embora no fenomenal Rats – The Rusical, um dos melhores desafios do gênero na franquia. Cherry esteve no páreo para retornar pós-covid, mas as competidoras foram suficientemente ingratas ao não escolher uma profissional da saúde que lutou na linha de frente para voltar à competição.
A segunda temporada de Drag Race UK conseguiu iluminar uma porção de temas interessantes e discuti-los com propriedade na TV britânica. Algo muito semelhante rolou no Canada’s Drag Race, quando BOA abriu o coração e falou sobre violência doméstica e relacionamentos abusivos. Na Terra da Rainha, foi trazida à mesa a questão do não-binarismo por Ginny Lemon (um ícone da porra) e Bimini Bon-Boulash (talentosa, brilhante, incrível, sensacional, de cair o queixo, espetacular, nunca igual, totalmente única, completamente revigorada, uma estrela).
2021 parece ser o ano das discussões de gênero rechearem o núcleo de RuPaul’s Drag Race. Existe um histórico de competidoras trans no show, mas a nova safra de queens oferece representatividade mais aparente, com conversas abertas e até mesmo composições para os desafios explorando suas identidades de gênero. Gottmik é o primeiro homem trans a batalhar pela Coroa no US, e tanto Bimini quanto Ginny chegaram balançando a bandeira do não-binarismo, expandindo noções pré-concebidas da comunidade e dando força ao movimento
E se tinha um lugar para isso ser feito, seria em um programa como RuPaul’s Drag Race. RuPaul manteve essa figura impeditiva de pessoas trans competirem em seu show, o que só vem mudando nos últimos anos. Bimini perder a Coroa pode significar que a condecoração de uma queen trans fique guardada até o fim da 13ª temporada, mas também corrige um ‘erro’ gritante na franquia, de nunca ter premiado uma drag queen gorda. A escolha de Lawrence como a UK Drag Superstar diz mais sobre RuPaul não querer fazer uma demonstração forte o bastante do futuro, mas retornar e remendar o passado.
Também não é como se Lawrence fosse a primeira big girl a chegar perto da Coroa, nada disso. Ginger Minj e Eureka perderam suas temporadas justamente para drags do mundo da moda e que exibiam visuais corporais e recheados de nudez. Violet Chachki e Aquaria são dignas de suas Coroas, assim como Bimini seria no Reino Unido. Mas Drag Race resolveu mudar. Lawrence Chaney pode não ter sido a competidora com o melhor histórico de vitórias mas, sem dúvidas, ela é alguém com a narrativa de campeã.
Com a temporada dividida em duas, antes e depois da pausa do covid, Lawrence se sagrou como o destaque do início. Ela acumulou 2 importantes vitórias, e o retorno das queens chegou com a sensação latente que a Coroa era de Chaney para perder. E ela quase o fez. A paralisação de 7 meses revigorou as competidoras restantes na Corrida das Loucas de RuPaul. A rotina de quarentena foi documentada no especial Queens on Lockdown, exibido na mesma semana da volta das gravações.
Assistimos as vivências e os percalços de cada uma. Ellie Diamond teve problemas financeiros e se mudou de volta para a casa dos pais. Tayce e A’Whora viraram colegas de apartamento (e algo mais). Veronica Green sofreu com a depressão mas encontrou maneiras de contornar a tristeza e a melancolia. Infelizmente, aconteceu que a queen foi positivada para a doença logo que as gravações retornaram, eliminando-a da competição, mas com um convite para voltar na 3ª temporada.
Do grupo que retornou, a mudança veio por duas drags: a terrível Sister Sister repaginou o visual, rendendo muito material para as meninas tirarem sarro dela, e Bimini Bon-Boulash renasceu. Apagada da primeira metade da competição, foi Bimini Babes quem eliminou Joe Black, dublando na estreia do show. Nunca antes em Drag Race alguém que esteve nas Piores da Semana no começo chegou a disputar a Coroa.
Muito disso se vale do talento imensurável de Bimini. Seus visuais arrojados e desafiadores, seu senso de humor diferente do blasé americano e o fator singular de sua personalidade e visão de mundo. Some isso ao fato de Bimini ter se mudado para uma casa com quintal, luz de sol, e muitos lugares para reflexão na pandemia. Sobrou tempo e espaço até para ensaiar death drops de bancos altos. Bimini foi sortuda da quarentena ter beneficiado seu processo criativo e controle pessoal, favorecendo suas escolhas e seu desempenho na volta.
E a narrativa de Drag Race UK nos enganou direitinho, praticamente colocando a londrina com a Coroa na cabeça e o cetro nos braços (no Reino Unido, a vencedora não ganha os 100 mil dólares, e sim uma web série produzida pela World of Wonder). O fato é que a derrota de Bimini não significa sua queda ou fracasso. A drag queen tem assinado com agências de modelo e logo estampará uma porção de campanhas. Chegar à Final engrandeceu sua imagem.
Perder Drag Race raramente significa uma derrota fora da competição. Olhando em retrospecto os últimos anos da versão americana: Gigi Goode conseguiu uma porção de contratos de desfile, Brooke Lynn Hytes ganhou seu próprio painel de jurados e Eureka virou apresentadora na HBO. Na 9ª temporada, das 3 finalistas perdedoras, duas retornaram e ganharam sua Coroa de All Star. Com a notícia de uma possível edição Internacional, Bimini pode retornar na onda de seu sucesso e falatório e logo conseguir essa grande vitória.
Tia Kofi começou como uma queen ‘de sobra’, mas acabou se tornando a Miss Simpatia moral da temporada. Seu carisma e singularidade compensaram os visuais aquém, e seus discursos na passarela ficarão marcados na herstory do programa. Ginny Lemon viveu à altura do título do ícone e se tornou a única competidora a não ouvir um Sashay Away. A eliminação de A’Whora doeu na alma, mas veio por um sólido motivo: não é possível montar uma Final de 3 competidoras disputando com chances reais a Coroa.
A ascensão de Bimini posicionou-a como clara favorita, ao lado da já consolidada Lawrence. Por isso, o talento e o sangue nos olhos de A’Whora precisaram ser mandados embora o mais rápido possível. Ellie Diamond era peso morto, e Tayce, tendo dublado 4 vezes antes da Batalha pela Coroa, não tinha chance alguma de sair com os louros. Dito isso, A’Whora foi injustamente posicionada nas Piores, sendo criticada pela boca suja (o que nunca incomodou ninguém em Drag Race) e forçada a Dublar contra sua amiga.
O drama venceu. Tayce foi mantida na competição por suas performances sanguinárias e, novamente, pelo carisma galês que encanta qualquer um. Além disso, seria feio montar uma Final apenas de drags brancas, considerando o número alto de queens negras talentosas que foram mandadas embora ao longo da temporada. Tayce assinou com a Coca-Cola e tem tudo para se manter relevante, elevar seu guarda-roupa e voltar ao ateliê mais sarcástica e deslumbrante do que nunca.
A segunda temporada de RuPaul’s Drag Race UK teve de tudo. Desafios novos e intrigantes (Who Wore It Best?), competidoras inigualáveis sendo excelentes em tudo que podiam (como esquecer a Katie Price no Snatch Game), competidoras doidas achando que estavam arrasando (o terror que foi o visual de Sister Sister no desafio das heroínas), recordes quebrados nas paradas musicais e a lendária Tia Kofi nos fazendo rir toda quinta à noite.
A temporada teve defeitos também: chamar Jessie Ware como jurada e desperdiçar a chance de uma Batalha de Dublagem do What’s Your Pleasure? I don’t think! Manter Ellie Diamond até a Final? Pelo amor! Editar a parcela final da temporada, resultando em Lawrence Chaney soando vilanesca e peçonhenta com o desafio do Stand-Up? Não precisava!
Lawrence sentiu o ódio dos fãs e saiu das redes sociais pouco antes da Final ser exibida. Para um show que prega tanto o amor, Drag Race é infestada de intolerância, preconceito e discursos criminosos de ódio. A torcida é para que, daqui para frente, isso mude. Para agora, enxergamos o além no Reino Unido, Drag Race UK é o futuro da franquia de RuPaul, e é como todos dizem: os mamilos são os olhos do rosto.