Drag Race Holland é um teste para cardíaco

Na foto vemos quatro drag queens. Da esquerda para a direita: Miss Abby OMG está toda de preto, com um espartilho roxo, Ma'ma Queen usa uma roupa azul e verde, com plumas e asas que lembram o carnaval, seu cabelo é azul claro e ela tem um adereço na cabeça, Envy Peru está de preto com uma grande pluma na cabeça e Janey Jacké veste vermelho, um maiô com meia calça e asas de anjo no mesmo tom de vermelho.
Além do título e da Coroa, a vencedora de Drag Race Holland levou para casa um vestido horroroso, mas avaliado em milhares de euros (Foto: Reprodução)

Vitor Evangelista

Pela primeira vez em 2020, Drag Race premiou quem mereceu a Coroa desde o dia um. Não contestando as brilhantes vitórias de Jaida Essence Hall e Shea Couleé, nem mesmo a coroação de Priyanka, mas o que mudou em Drag Race Holland foi o favoritismo avassalador que a estonteante e belíssima Envy Peru exerceu na órbita de suas concorrentes. A drag queen latina clamou para si o título de Primeira Super Estrela Drag da Holanda, numa temporada com mais altos do que baixos, e que definitivamente colocou o público numa montanha-russa emocional.

Enquanto a figura de Envy no topo da semana era o esperado, as corredoras que caíam no Bottom 2 (as piores do episódio) sempre surpreendiam. Não só a batalha de dublagem, o icônico Lip Sync For Your Life, mas quem era mandada embora. Indo na contramão da franquia norte-americana, a versão comandada com pulso firme e bom humor por Fred Van Leer tomou decisões questionáveis, mas que no fim fizeram o mínimo de sentido.

A foto promocional da temporada, o fundo dourado e um homem branco sentado num trono vermelho e dourado, ao seu redor 10 drag queens posam para a foto, usando roupas das 3 cores da bandeira da Holanda: azul, vermelho e branco
Fred Van Leer ao lado das dez drag queens que competiram na primeira temporada de Drag Race Holland (Foto: Reprodução)

RuPaul’s Drag Race nunca foi sobre ganhar com merecimento ou como um acerto de contas. A corrida das loucas adora injetar viradas e inversão das regras na hora de escolher quem representará o legado do show. RuPaul tem confundido a audiência nos últimos anos, principalmente quando não leva mais em conta o histórico das competidoras. O termo que a série usa é ‘track record’, o medidor do desempenho das drags, onde quem vence mais desafios desponta como a favorita de cara.

Na versão holandesa de Drag Race, entretanto, RuPaul não é a cabeça mandante da bancada de jurados. Aqui fora, não sabemos do tamanho da influência do apresentador nas decisões da temporada, mas o que fica claro é que Fred dá o tom do jogo. O host, que também se monta e aparece de vestido, espartilho e salto alto, deu um show de carisma, talento, singularidade e coragem. Não que seu CUNT fosse medido, longe disso, o estilista holandês já começou em total entrosamento e sintonia com o formato e com as drag queens.

O busto de RuPaul, uma drag queen negra e de peruca branca, aparece numa TV. As drags olham para a TV.
RuPaul aparecia na TV do ateliê antes de Fred entrar para anunciar o desafio da semana, fora isso a dona da franquia também chamava a categoria da passarela e dava tchau no fim do capítulo (Foto: Reprodução)

Ele manejava a graça e o fator ‘tonto’ da franquia, mas nunca baixava a guarda para ser visto como igual pelas rainhas. Erro esse que ficou evidente na investida canadense de Drag Race que, além de carecer de bom humor dos apresentadores, também era deficiente de pulso firme e alteridade na tomada de decisões e no julgamento da linha tênue entre gosto pessoal e objetividade crítica.

Fred soube o quanto roubar dos maneirismos de RuPaul, fazendo graça das frases prontas e da ‘cerimônia’ que é o momento da deliberação da bancada. Algo essencial para o sucesso de Drag Race Holland foi a decisão de encarar a temporada inaugural como parte da franquia mundial, e não apenas uma xerox que traduz as literalidades do inglês para os Países Baixos. Nessa leva, nasceram novas maneiras de editar os desafios e até jargões inéditos. ‘Drag Race acabou, pra você, e não para mim’, eram os dizeres de Fred antes da eliminada dar adeus.

Vemos os 5 jurados na passarela, a primeira é uma mulher branca e loira, na casa dos 30 anos, que usa um vestido bege dourado, ao seu lado um homem branco e cabelos claros veste um terno branco e sapatos da mesma cor, ao seu lado uma drag queen branca e de cabelos rosa veste um vestido coberto de flores rosas nos ombros e nas pernas com detalhes azuis no peito, ao seu lado outra mulher branca e loira usa um vestido bege furado e ao seu lado uma mulher branca idosa de cabelos castanhos e óculos veste um terno preto com detalhes em azul
O painel de jurados tinha Fred e Nikkie Plessen como fixos, que convidaram uma porção de celebridades do país para auxiliá-los, entre eles a icônica Nikkie Tutorials (Foto: Reprodução)

E aqui aparece a faca de dois gumes que vai de encontro ao título da crítica. Drag Race Holland foi um teste para cardíacos em distintos aspectos. Para o lado positivo, era impossível prever a eliminada da semana com base no histórico. Queens ótimas, e que inauguraram sua posição nas Piores, foram mandadas embora sem mais, nem menos. Mesmo dublando contra outras que fizeram do Bottom 2 sua zona de conforto. Como esquecer de Miss Abby OMG, pela trigésima vez na Batalha de Dublagem, vencendo a belga Sederginne, que teve um único deslize? 

Abby, que foi publicizada como a primeira drag queen brasileira da franquia, representa muito da alma que ainda vende o formato de reality show com tanto vigor. Ela se envolvia em quase toda briga, ela adorava ser a excluída e a ‘carregada’ e, acima de tudo, Abby OMG ostentava uma química incrível com a câmera. Não posso afirmar que a mineira adquiriu o posto de Narradora da Temporada, pelo fato da maioria das rainhas terem criado uma relação platônica com o confessionário, servindo momentos de honestidade e sensibilidade. O elemento X da persona de Abby aumentou sua ‘vida útil’ na corrida até a Final, depois de sobreviver à uma Batalha com Ma’ma Queen, resultando no questionável Double Shantay (quando ninguém é eliminada) da temporada. 

Miss Abby OMG, uma drag queen de pele clara e cabelos loiros sorri com os olhos e as mãos para cima, ela tem as cores do arco-íris pinadas em seu peito, que encontram o tecido do vestido, que mantém o padrão de cores
A brasileira Miss Abby OMG, com o visual de arco-íris; reparem que o look tem nome, algo inédito em Drag Race (Foto: Reprodução)

Dessa jogada de transformar Miss Abby OMG na Roxxxy Andrews no All Stars 2’ da temporada, Drag Race Holland eliminou uma competidora mantendo-a no jogo ao mesmo tempo. Era claro que a brasileira não ganharia a Coroa, mas sua mera presença no ateliê já aumentava a temperatura e deixava qualquer bate boca suculento. E não faltaram desentendimentos nesse ano inaugural holandês. Não que as queens fossem briguentas ou desnecessariamente barraqueiras, a maioria dos conflitos era relevante e soava real.

Fator que a versão americana de Drag Race matou há muitos anos, considerando o status de império e propaganda que a franquia sustenta nos Estados Unidos. Na terra do reinado de Jaida, as drags entram no ateliê com estratégias de marketing e torcendo para não serem odiadas na internet, cada movimento é calculado. O que, felizmente, se mostra inviável no ambiente dos Países Baixos, semelhante ao que rolou meses atrás no Canadá. Nessas inaugurações e no ato de abrir portas de Drag Race às culturas distintas dos EUA, as competidoras espelham muito mais vulnerabilidade e despreparo na criação de ‘personagens prontos’. 

Uma colagem de 3 visuais na passarela: a primeira foto é de uma drag queen com pele parda que usa um maiô bege com detalhes rosa, e sua peruca imita um sorvete na casquinha, também cor de rosa; ao lado dela, uma drag queen branca, de barba e cabelos pretos, veste um vestido marrom e amarelo, ao seu lado uma drag queen usa uma peruca de topete amarelo e uma roupa branca, manchada com padrões de pichação.
As queens mostraram lados e vertentes drag até então desconhecidos ou pouco explorados na série de RuPaul (Foto: Reprodução)

O que abre espaço para deslizes e burradas, naturalmente. Por pior que seja, o preconceito anda junto das lutas sociais, de sexualidade e de gênero, e nem o ambiente aparentemente seguro da passarela de Drag Race saiu ileso de machucar profundamente uma competidora. Falo do gritante preconceito sofrido por Ma’ma Queen. A queen, que desmontada se enxerga no espectro do não-binarismo, foi ridicularizada quando incorporou sua visão de mundo no desafio Half Man, Half Queen, onde as corredoras tinham de mostrar o ‘meio-a-meio’, homem e rainha. 

Ma’ma fugiu do binarismo das outras competidoras, e não foi de terno e vestido para a passarela. O que se sucedeu depois das críticas foi um show de horrores, que levou a rainha a chorar muito no Untucked (momento que as queens esperam a deliberação dos jurados) que integra o capítulo. A temporada tentou colocar panos quentes na polêmica na Final, quando Ma’ma esclareceu para Fred no podcast o que significava ser não-binárie. ‘Você vai fazer parte de algo que ainda não existe’, foi a mensagem que ela deixou no clássico momento de falar com as fotos da época de criança.

Ma'ma Queen, uma drag queen branca, veste dois vestidos em um: do lado esquerdo, ela usa tons de preto e um chifre, do lado direito prevalece a peruca loira e um maiô cheio de bolinhas e brilhos, nas cores vermelho e verde
Perfeição, conceito, entrega, Ma’ma Queen serviu tudo; além, é claro, de fazer história transformando o pai em drag no Makeover (Foto: Reprodução)

E o desafio do meio a meio, no episódio do Snatch Game, também colocou ChelseaBoy para ouvir baboseiras sobre o visual escolhido. Chelsea era a artista mais diferente do grupo, e já na propaganda de anuncio da temporada sua maquiagem corporal exibia inspirações alienígenas e fora da caixinha do ‘se vestir de mulher’, tão comum nas abordagens padrões de Drag Race. Chelsea foi soberana nas escolhas estéticas, além de demonstrar que sabe ouvir críticas e melhorar suas fraquezas. 

Mesmo o visual X-Men metamorfo do meio-a-meio era representação de vitalidade e vida longa da arte drag nesse programa. Chelsea foi feita de boba depois de matar a pau no Snatch Game, imitando Joe Exotic, o surpreendentemente real astro de Tiger King. Fred, Nikkie Plessen e os demais jurados passaram uma bela rasteira na queen, que ouviu um sonoro ‘você venceu o Snatch, tá?’, antes de ser salva pela bancada. Quem saiu com a vitória na conta, é lógico, foi Envy Peru, que é ótima e talentosa, mas não esbanjava nem um terço da originalidade de Chelsea naquela passarela.

Uma drag queen branca usa um macacão que representa metamorfose, uma parte escura tomando conta da parte caucasiana do seu corpo. Ao lado, a mesma drag queen caracterizada como o personagem Joe Exotic, um homem branco e idoso, de cabelos loiros, cavanhaque escuro e camiseta de estampa de tigre.
ChelseaBoy tem o necessário para se consolidar com uma das competidoras mais icônicas de RuPaul’s Drag Race (Foto: Reprodução)

Muito pode se dizer do favorecimento das latinas nessa competição holandesa. Já comentei os excessivos salvamentos de Abby, que apesar de tudo era deliciosa de ser assistida, mas quando o assunto é Envy Peru, o calo é outro. Desde o primeiro vislumbre no ateliê, a peruana já era a clara vencedora. Cheio do CUNT que o programa adora procurar (e nos anos recentes, raramente encontra), ela é a definição de uma rainha vitoriosa em todos os campos.

Os visuais de cair o queixo, a comédia que virava a chave do humor chulo para o astuto num piscar de olhos e a porcentagem de trauma e choro que ajuda na construção de alguém intocável nas artes mas muito relacionável no campo humano. Envy acumulou quatro vitórias, um feito raro na franquia original. Antes da peruana, Sharon Needles (que venceu a temporada 4), Shea Couleé (que ganhou o All Stars 5) e Gigi Goode (que ainda não tem sua Coroa) foram as únicas que clamaram esse número de êxitos.

A grande competição de Envy repousou na figura de Janey Jacké. Poderia escrever a palavra grande entre aspas, pois Janey não representava temor algum às outras competidoras. Claro arquétipo da queen ‘complicada e perfeitinha’, que foge dos momentos vulneráveis e tem mínimos deslizes, e que no geral não traz nada de novo ao jogo. Lembram da Scarlett Bobo? Aliás, se Drag Race desse a Coroa à Janey Jacké, Violet Chachki perderia o posto de vencedora mais antipática da franquia. E, se Violet tinha a moda à seu favor, coitada de Janey.

10 drag queens, todas desmontadas, estão ao redor de uma mesa rosa e roxo, os detalhes do cenário são da mesma cor
O ateliê e toda a identidade visual de Drag Race Holland trabalhavam com tons puxados no rosa (Foto: Reprodução)

De volta ao título, que sugere o tal teste para cardíaco: a inventividade da Holanda serviu tanto para o bem quanto para o mal. Uma tirada boa foi nomear os visuais da passarela, fruto que rendeu bons trocadilhos e esse ar de individual e inovador de cada modelito desfilado. E falando na passarela, chegamos ao ponto mais baixo de Drag Race Holland. Não sei o que deu na cabeça do editor do programa, que achou uma boa ideia sobrepor uma porção de canções na trilha sonora dos desfiles. 

Além do tema de abertura, ainda eram incorporados instrumentais das músicas de RuPaul. A gororoba sonora casou com a edição de imagens, que por algum motivo picotava as tomadas da Batalha de Dublagem, além de nunca adicionar a legenda visual com informações das canções, dos artistas e dos direitos autorais. Esses deslizes podem parecer um detalhe de rodapé, mas na hora do ‘vamos ver’ e de acompanhar o episódio, a edição porca e carregada alienava a experiência. Era insuportável de assistir a parcela final do capítulo. 

Envy Peru, uma drag queen latina de pele clara recebe a coroa das mãos de uma pessoa fora de enquadramento.
Envy Peru, a primeira latina coroada na franquia Drag Race (Foto: Reprodução)

As decisões não favoreciam nem as queens nem o programa. Por falar nas rainhas, é inevitável comentar a passagem delas pela competição. Roem, a primeira eliminada, caiu na armadilha de ser soberba logo na semana um de uma temporada inaugural (vocês se lembram da Kyne? Então!). Patty Pam Pam exalava as vibrações de Tammie Brown, só que dessa vez a competição é muito maior que na época de Tammie e a ruiva foi logo chutada. Megan Schoonbrood fica no topo da lista de piores competidoras da série e merecia ter saído no lugar de Roem.

Madame Madness não viveu além da barba, mas seus 4 capítulos na corrida apresentaram com vigor o potencial de alguém que foge dos moldes comuns. Sederginne sair no Snatch foi criminoso, mas entendível quando lemos o contexto e o impacto de Abby OMG. A eliminação de ChelseaBoy, além de dolorosa de ser encarada, reforçou o caráter traiçoeiro do desafio do Makeover, onde as queens refazem alguém à sua imagem drag. Chelsea sucumbiu no mesmo momento que rainhas poderosas da franquia, como Raja, Alaska e Manila, também tropeçaram. 

O surpreendente (ninguém acreditou no Double Shantay) top 4 foi muito mais significativo no papel do que na realidade. Miss Abby OMG era o glamour do Brasil finalmente injetado em Drag Race. Ma’ma Queen representava o futuro que veio cedo demais. Janey foi o protocolar segundo lugar que nunca ganharia, papel que Ginger Minj e Kim Chi já chamaram de seu. E, por fim, Envy Peru marcou a imagem da América Latina celebrada do outro lado do mundo, o sinônimo de perfeição drag, ponto final. Oito episódios de Drag Race Holland depois, o bem venceu e Envy venceu, ainda bem. Que viva Peru, carajo, e que as versões não americanas de Drag Race vivam junto. 

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