Vitor Evangelista
RuPaul, por favor, está demais! Sem folga, a máquina Drag Race mastigou e nos entregou mais uma edição de sua infinita coleção de franquias. Dessa vez, é hora de analisar a segunda temporada de Drag Race Holland, uma das primas europeias do show. Setembro de 2021, mês de encerramento desse ciclo, foi histórico para a comunidade trans, que assistiu a duas mulheres serem coroadas como as Próximas Super Estrelas Drags. Kylie bradou vitória na América, enquanto a Holanda foi o lugar do triunfo de Vanessa Van Cartier.
Mãe drag de Envy Peru, a vencedora do ano passado, Vanessa se tornou a terceira mulher trans vencedora de Drag Race, a primeira belga e a primeira mulher a ganhar na Europa. Um amor de pessoa, centrada, boa nos desafios e com visuais impecáveis na passarela, Cartier fez por merecer seu local no hall das grandiosas, por mais que a temporada que a colocou lá sofreu um bocado com sabotagens, roubalheiras e julgamentos nada fundamentados.
Uma das primeiras mulheres trans a competir no antigo continente, Vanessa abriu o coração durante os oito extensos e intensos capítulos, ocasionalmente tomando os holofotes, por sua história de vida e sua posição quanto ao ódio que recebeu ao longo da transição, e o período das cirurgias. Protagonista nata de Drag Race Holland, no episódio do Makeover (quando as meninas moldam alguém à sua imagem), Vanessa recebeu o parceiro como tela em branco e protagonizou uma das histórias de amor mais lindas captadas pelas câmeras da franquia de RuPaul.
Quem acabou com a medalha de prata foi a sempre polida My Little Puny. Competente e completa, o que acabou lhe tirando o Cetro e o cheque foi a falta de uma narrativa forte dentro da Corrida, o que, nos últimos anos, se mostrou um fator importantíssimo para a finalização do ciclo de Drag Race. O pico de Puny aconteceu na passarela em que homenageou o pai, um famoso cartunista holandês que faleceu por complicações do alcoolismo. Eternizada por uma interpretação carregada de paixão e dor da drag queen, a mensagem de cura e carinho do reality show foi perpassada através da figura paterna da competidora.
O que Puny tinha de merecedora da Final, a terceira integrante do pódio tinha de ladra. A jovem Vivaldi, embora trouxesse um ar de frescor para a arte drag, se mostrou indisciplinada e delinquente ao esconder um celular nas malas e usá-lo ao longo da competição, algo expressamente proibido pelas regras do programa. Quando confrontada pela futura vencedora Vanessa, Vivaldi perdeu o chão e borrou as calças, com medo da represália.
Essa que não veio de modo algum, já que o apresentador Fred Van Leer deu bronca nela no palco, mas, mesmo assim, não lhe disse Sashay Away, mantendo a trambiqueira no páreo. Sem o pulso firme de RuPaul (que anos atrás mandou Willam, uma das candidatas à Coroa, embora depois de burlar as regras), Fred e Drag Race Holland mostraram na prática que estão longe da seriedade de Mama Ru. O que é uma pena, considerando que esse ano na Holanda demonstrou mais controle e noção de como sua Corrida das Loucas deve se moldar.
Menos caótico que o ano inicial, 2021 escalou um elenco muito mais talentoso e carismático que antes, com tanto talento que a favorita ao prêmio teve de ser eliminada antes da Final, tudo para que o caminho de Cartier fosse fácil e brilhante com a trajetória de Dorothy pelas ruas de Oz. Keta Minaj, a vencedora moral de Drag Race Holland, viu seu favoritismo na forma de 3 insígnias ir pela descarga ao ser mandada embora em detrimento da permanência de Vivaldi que, reiterando, havia quebrado as regras de isolamento do programa na semana anterior.
Eliminada também contra Vivaldi, a Miss Simpatia Tabitha começou a temporada mandando sinais confusos. De primeira, a veterana se mostrou contra a participação de uma mulher trans na Corrida, repetindo o mesmo tipo de comentário que a própria RuPaul destilava um par de anos atrás. Porém, a ilha de edição do show parece ter apagado qualquer traço de preconceito nas filmagens do confessionário da drag, que embora fosse um tanto amarga com o elenco, encontrou o meio-termo entre o elogio e a crítica ácida.
Sua trajetória pode não ter sido a mais polida e consistente no quesito visuais, mas a diversidade artística do elenco da temporada dois fez bonito e não deixou faltar nenhum “arquétipo drag”. Nas passarelas, The Countess inspirava e surpreendia toda semana. Sua falta de habilidade na atuação e na comédia, todavia, acabou naufragando uma jornada mediana. Também empregada de Fred em 2020, a loira foi poupada em uma Dublagem nada inspirada contra Ivy-Elise Monroe, em mais uma das roubadas do apresentador.
Salvando The Countess pelo histórico na competição, Fred mostrou ser mestre em usar dois pesos e duas medidas. Quando uma Keta Minaj, com 3 insígnias pesando no peito, foi eliminada perante uma desrespeitosa e cheia de críticas negativas Vivaldi, o track record não foi fator determinante. Mas, quando a favorecida era uma colega sua, uma drag branca e magra, e a eliminada era uma das únicas competidoras asiáticas da franquia, a resposta foi mandar embora a segunda, dando desculpas esfarrapadas.
Ivy-Elise é da família de Miss Abby OMG, competidora de 2020 e a primeira brasileira participante de Drag Race. Assim como sua parente, Ivy desapontou na performance e, o que Abby tinha de confiança, a irmã esbanjava em medo e temor. Afinal, boas Dublagens não salvam alguém que falha consecutivamente em todas as demais tarefas que o programa repassa.
A falha também manchou a segurança de Love Masisi, filha drag de Vivacious e primeira haitiana a competir em Drag Race, eliminando-a após uma performance nada cômica de Grace Jones no Snatch Game. Para piorar, na hora de provar que sabia todas as palavras e se livrar da eliminação, Masisi insistiu em manter uma máscara que cobria o rosto, quase impossibilitando os jurados de avaliarem sua sincronia labial. Sem um momento à la Valentina, Fred anunciou, sem surpresas, que Love Masisi partiria da competição.
A jovem Reggy B parecia ter fogo em suas performances energéticas, mas, diferente de The Countess e Vivaldi, a juventude e o estranhamento do ambiente competitivo acabaram eliminando-a logo na segunda semana. O posto de primeira exilada da ilha ficou com Juicy Kutoure, presa na armadilha de um Show de Talentos ruim. A mudança na habitual passarela de apresentação cultural (normalmente um look inspirado em sua cidade natal) deu um choque nas competidoras, forçadas a saírem da zona de conforto logo na estreia.
Como um todo, a segunda temporada de Drag Race Holland soube remendar os erros crassos de 2020. Ciente de seu papel dentro da franquia, o filhote de Fred Van Leer agora empolga pelos motivos certos (visuais de cair o queixo e humor pontual), por mais que a imparcialidade dos jurados acabe tostando a paciência de quem assiste mais uma das zilhões de séries que carregam o legado de RuPaul Charles.
Entre um elenco que misturou a moçada com as experientes, sai coroada Van Cartier, alguém que, sem dúvidas, tem todas as ferramentas para usar essa plataforma para melhorar e muito o mundo artístico e também o social. Na Dublagem pela Coroa, ao som de This Is My Life de Shirley Bassey, a vida se curvou à poesia do amor. Vestida como uma guerreira Amazona, Vanessa celebrou a mulher que é, libertando-se de todas as violências impostas à ela e, no processo, sendo festejada, exaltada e eternizada.