Guilherme Veiga
Falar em Cinema Brasileiro é naturalmente evocar Glauber Rocha. E é inevitável falar sobre Glauber Rocha sem lembrar de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Isto está longe de ser uma máxima unicamente brasileira, pelo contrário: indo de Martin Scorsese, adentrando em Godard, passando por Bong Joon-Ho e chegando em Quentin Tarantino; todos exaltam a importância do cineasta e do Cinema Novo para a Sétima Arte, às vezes, mais do que nós mesmos. Após a restauração do longa no Festival de Cannes deste ano, a obra retorna ao seu país de origem, na Apresentação Especial da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
O diretor aqui traça uma própria dialética tendo como cenário o sertão. Por mais que o título da obra apresente um maniqueísmo, o seu verdadeiro foco está nas últimas palavras dele, a Terra do Sol. Embora já tenha sido representada como esse limbo, essa terra de ninguém, em outras produções do imaginário brasileiro, como em Vidas Secas, é através do longa que nos é impressa uma representação mais palpável de como a definição de Purgatório – esse espaço vazio entre céu e inferno – logicamente, residirá na intersecção entre os dois. No caso, em nossa própria existência em terra.
Assim como em outras obras que tratam a região do sertão, o descaso é o principal predador do povo que vive no local. Aqui, o Estado, além de omisso, é nefasto. Resta à população angariar seu resto de esperança em espectros antagônicos, o (falso) messianismo, que representa Deus, e o cangaço, representando o Diabo. Porém, o diretor, em uma releitura muito mais lúcida da Teoria da Ferradura que sequer existia na época, mostra que os conceitos, além de próximos, são bem mais complexos do que se imagina.
A história segue os pecadores Manuel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães). Após o homem cometer um assassinato, ambos buscam a salvação em meio a insalubridade do sertão, ora na religião, ora no cangaço. Deus e o Diabo na Terra do Sol é muito consciente ao tratar a redenção além da estrutura de roteiro da qual estamos acostumados pós jornada do herói. No mundo real, não existem heróis, por mais que custemos acreditar. Cada pessoa tem seu meandro de bem e mal bagunçados no próprio ser, e o filme acerta e muito ao explorar a via-crucis desse processo.
Glauber entrega um singelo retrato do sertanejo e de como ele absorve suas indagações. O texto, também dele, juntamente com Walter Lima Jr., é extremamente inteligente ao despir o povo de toda sua dualidade moral, visto que seus conflitos internos têm infinitas dimensões, e inseri-lo em um western spaghetti com tempero brasileiro. Em um mundo de miséria, fome e violência, sobreviver é tão perigoso que tais discussões, na prática, nem acham tempo para analisar seus lados da moeda. Ao trazer esses pontos através de uma perspectiva puramente religiosa, o cineasta enriquece ainda mais a mensagem que quer passar, evidenciando o quanto a prisão em caixas morais é prejudicial.
Além de roteiro, o diretor, em parceria com Sérgio Ricardo, também é responsável pelas composições musicais da obra. Quando somente a imagem não consegue expressar com certa clareza a mensagem de Deus e o Diabo na Terra do Sol, são as ótimas letras – intercaladas com as Bachianas de Villa-Lobos – que a desenham. Outros aspectos técnicos também brilham, como, por exemplo, a fotografia. Driblando as adversidades técnicas da época e invocando mais uma vez o embate entre forças antagônicas, Waldemar Lima entrega um preto e branco riquíssimo em detalhes, o qual, ao mesmo tempo em que esse yin-yang ressalta as expressões sofridas, sua espiral, quase em um fenômeno da física, dá cor à história.
As atuações também são outro ponto fora da curva. Sem elas, seria impossível transmitir a mensagem do longa com o devido peso. Othon Bastos (Império, O Bicho de Sete Cabeças) da vida a Corisco, o sanguinário sucessor espiritual de Lampião – e que também é a marca registrada da obra – de forma sublime, adicionando várias camadas em um estereótipo que há tempos foi marginalizado. Geraldo Del Rey (O Pagador de Promessas) e Yoná Magalhães (Tieta, Roque Santeiro) conseguem construir muito bem os personagens centrais da história, moldados através de sofrimento e dúvida.
Deus e o Diabo na Terra do Sol, para muito além de um retrato do sertanejo, é também um raio-x da sociedade brasileira que ainda perdura, mesmo analisando um ponto de vista extremamente específico dela. O sertão está muito longe de virar mar e o mar ainda não virou sertão (pelo menos, não por enquanto). Infelizmente, ainda rejeitamos o Deus negro e aceitamos ser comandados pelo Diabo loiro, nas mais diferentes concepções que tais conceitos podem ser aplicados. Porém, a única coisa que ainda nos faz ignorar a ameaça de viver e nos permite seguir em frente por esse solo árido da existência é a esperança.