Juliana Boaventura
As transformações físicas, descobertas sexuais e emoções intensas que fazem parte da transição da infância para a adolescência povoam e intrigam o imaginário popular. Muitos artistas buscam examinar isso em suas obras, partindo de suas experiências íntimas. Em Das Tripas Coração (1982) – em inglês, Heart and Guts –, a cineasta Ana Carolina constrói um microcosmo que expõe aspectos dessa transição de forma cômica e teatral, valendo-se de uma narrativa onírica não-linear, declamações inflamadas e murmúrios fora de cena. Uma inclinação à rebeldia e à desobediência permeia o longa-metragem, que desenrola-se dentro de um colégio feminino, austero, religioso e falido. O filme compõem a seção Apresentação Especial na programação da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
A diretora e roteirista iniciou sua produção cinematográfica com um documentário sobre Getúlio Vargas (1974). Em seguida, ela concebe Mar de Rosas (1977) e mais dois longas que abordam a condição feminina, Das Tripas Coração (1982) e Sonho de Valsa (1987); compondo uma trilogia. Seu trabalho mais recente, Paixões Recorrentes (2022), também foi exibido na Apresentação Especial da 46ª Mostra. Ao longo de sua carreira, ela tem exposto acerca da dificuldade em financiar e executar seus projetos, como em uma entrevista ao Roda Viva em 1994. Ela menciona também a necessidade de renovação do aparato de produção cinematográfico brasileiro e suas perspectivas e ideias para o cinema nacional, colocando-o como um meio de mudança social.
Em Das Tripas Coração, há um uso provocativo de superposição das vozes dos atores, os sons se misturam espacialmente conforme a câmera se move. Isso evoca uma rejeição à ordem, como durante a aula do professor Guido (Antônio Fagundes), em que os murmúrios das alunas vão de provocações a questionamentos sobre o estado civil do professor. A confusão de vozes agrega à comicidade dos diálogos e ao aspecto surreal do filme, um recurso que a diretora reconhece causar estranhamento no público. Em entrevista à Tribuna da Imprensa em 1980, afirma: “o delírio, as coisas que a gente pensa e não diz, aquelas de que a gente ri e outros não, isto é o que vale no meu cinema. Interesso-me pelo não-dito, pelo mal-dito, que tem mais graça, é mais possível e mais interessante”.
O colégio em que a trama se passa é como um espaço fechado que encapsula os fenômenos da sociedade, conflitos geracionais, de classe social e a sexualidade em todas as fases da vida. Alguns diálogos entre as faxineiras, as inspetoras, o professor e as diretoras da escola, Miriam (Xuxa Lopes) e Renata (Dina Sfat), reforçam a ideia de que as alunas adolescentes representam uma força da natureza, incontroláveis. Há um espírito de rebelião, de desobediência à ordem vigente, que atinge seu ponto máximo quando uma das alunas (Maria Padilha) urina em meio à uma missa, sendo punida em seguida.
Em meio ao ritmo acelerado dos acontecimentos, o desejo sexual dos personagens é a força motriz dos conflitos. Tanto revelações íntimas das personagens quanto declamações poéticas e reflexões filosóficas evocam o inconsciente, as classes sociais e as estruturas políticas. Em Das Tripas Coração, Ana Carolina explora o estranhamento, e a maneira como a narrativa acontece acrescenta ao aspecto delirante e cômico da narrativa.
O segundo filme da trilogia sobre a condição feminina, segundo ela, traz uma tentativa de explorar o sexo e a culpa, a visão masculina do desejo feminino. Em um discurso que explora tanto a insubmissão e a desobediência características da transição da infância para a adolescência quanto diversas contradições ao longo das gerações, a produção acaba por abarcar (quase) toda a vida.