Raquel Dutra
Esta é a temporada em que o Cinema mainstream se ocupa em reconstituir trechos da história da luta por igualdade e liberdade na América ao mesmo tempo em que inicia a concretização da exaustiva cobrança por diversidade e inclusão. De 12 meses pra cá, surgiram em nossas telas retratos memorando períodos e movimentos que determinaram o que nossa realidade é hoje e os avanços que conquistamos, pintados por cineastas que hoje compõem as premiações mais diversas da história. No gênero que se ocupa em registrar a nossa existência, o cenário não poderia ser diferente, e Crip Camp: Revolução pela Inclusão é mais um encontro de todas as pautas que tomaram o ambiente de debate sobre as produções audiovisuais nos últimos meses.
O documentário se volta para os anos 50 acompanhando inicialmente a história do Camp Jened, um acampamento para jovens com deficiência, até chegar no começo dos anos 60 e continuar pelas próximas três décadas assistindo o nascimento e consolidação de um movimento em busca de direitos para aquela população, que na época formava a maior minoria dos Estados Unidos. A ligação de Crip Camp entre esses dois extremos temporais se dá pelos efeitos gerados no acampamento, que motivou a organização coletiva por igualdade a partir de sua principal premissa: constituir um lugar seguro para que pessoas com deficiência pudessem viver livremente sua juventude, longe dos preconceitos da sociedade e da superproteção dos pais, ainda que por apenas alguns dias.
Ao longo dos 100 minutos, o epicentro da história se constrói sob o fato de que os jovens livres de Jened se tornaram ativistas que mudaram a estrutura segregacionista dos Estados Unidos junto dos demais movimentos por direitos civis. Assim, Crip Camp não funciona somente como uma cápsula do tempo de memórias juvenis nem “apenas” (com muitas aspas) como um histórico da luta pelos direitos das pessoas com deficiência no país, mas tece também uma reflexão poderosa sobre auto-estima e a potência que existe na simplicidade do sentir-se pleno enquanto ser humano.
É por isso que o ex-campista James LeBrecht defende logo no início que o acampamento “mudou o mundo” e decidiu contar a história como um dos principais personagens e colaboradores do filme, além de também dirigi-lo, roteirizá-lo e produzi-lo junto de Nicole Newnham. Com muita memória afetiva, ele engata a narrativa a partir de suas lembranças pessoais num lugar que de início pode parecer com qualquer outro acampamento para jovens na era Woodstock. E justamente por ser tão normal é que ele era tão especial. No Camp Jened, não existia tratamento diferenciado para as dezenas de jovens e adultos com deficiência física ou intelectual, que se encontravam em todos os verões entre a década de 50 até o final dos anos 70 nas montanhas do estado de Nova Iorque.
As únicas determinações eram a liberdade e o respeito, e a única coisa que todos tinham em comum era a falta de convívio social, alguns porque eram obrigados institucionalmente pela segregação, outros para evitar a exposição ao preconceito. Quem coordenava tudo eram os monitores do acampamento, jovens integrantes de outros movimentos sociais, sem deficiência e sem formação para atender as necessidades especiais dos campistas, o que acabava por intensificar a sensação de liberdade, autonomia e confiança nas brincadeiras, festas e rodas de conversa promovidas no Camp Jened.
A energia da convivência no acampamento é trazida para Crip Camp através de alguns registros que James LeBrecht fez de seus verões em Jened, buscando vazão para para suas inspirações audiovisuais enquanto vivia sua juventude com uma deficiência física. Ali, exceto pelos momentos reservados para cada um compartilhar suas dores na intenção de encontrar apoio e identificação, não era lugar de se definir pelas suas condições físicas ou intelectuais. O clima era tomado por uma vibração intensa de amizade e diversão.
O que reflete num filme leve, bem-humorado e natural, exatamente da mesma maneira que as coisas eram encaradas em Jened. Mesmo nas ocasionais imagens em preto e branco, Crip Camp é colorido pela contagiante vivacidade de seus protagonistas e especialmente iluminado pela trilha construída com as músicas enérgicas dos anos 60 celebrando o amor e pedindo por liberdade e paz.
Mérito disso também é de seus personagens, que dividem suas vivências, das mais gostosas às mais difíceis, com a paixão da saudade e brilho no olho da satisfação, algo que só transforma o filme em algo ainda mais especial. Além de acender uma luz em memórias deliciosas, Crip Camp coloca pessoas com deficiência como fontes de informação em uma narrativa maravilhosa sobre elas, onde elas são ouvidas, respeitadas e consideradas como o que de fato são: uma parte importante da história.
Organicamente, esse movimento origina o segundo ato do filme de LeBrecht e Newnham, que se destina exclusivamente a explorar o nascimento dos movimentos pelos direitos das pessoas com deficiência. E inteligentemente, isso é o que cria uma distanciação entre Crip Camp e uma possível romantização perigosa da luta exaustiva que aqueles grupos tiveram que enfrentar enquanto buscavam direitos básicos e do tratamento humilhante que tiveram que encarar até chegar lá.
Com um objetivo muito bem definido e ciente do poder que tem nas mãos, Crip Camp não usa sua história divertida sobre juventude de forma irresponsável, pintando tudo às mil maravilhas como algo que só é sobre festa e curtição. O documentário não hesita em mostrar também a realidade cruel vigente pelo preconceito através de imagens fortes, denunciando o tratamento desumano que outros locais de “assistência” reservavam às pessoas com deficiência. Elas, inclusive, infelizmente não estão todas vivas para dar voz às suas experiências na tela, mas as figuras centrais do documentário encontram espaço ali, presentes e contundentes para contar sua própria história.
A principal delas é Judy Heumann, estrela de Crip Camp e uma das melhores oradoras e líderes que teremos a chance de conhecer. Na época, a jovem campista, convivendo com as sequelas da poliomielite que teve ainda quando bebê, logo se revelou uma liderança dentro da bagunça boa do acampamento. Fora dele, sua habilidade de articulação a transformaria numa das figuras mais importantes na luta pelos direitos das pessoas com deficiência nos Estados Unidos, iniciada com a Ocupação 504, quando 150 pessoas ocuparam o Departamento de Saúde de São Francisco até que fossem aprovadas leis locais de acessibilidade.
Judy também foi conselheira internacional para os direitos das pessoas com deficiência no Departamento de Estado dos EUA no governo de Barack Obama, e talvez seja a responsável por fazer a ponte entre o filme e sua produção, assinada pela Higher Ground. A produtora do ex-presidente e de sua esposa, Michelle Obama é queridinha da Academia desde seu primeiro filme, estreando na indústria cinematográfica já com uma estatueta de Melhor Documentário no Oscar do ano passado. O fenômeno foi atingido com Indústria Americana – intragável e apático, diga-se de passagem -, filme também distribuído pela Netflix que causou o terror da categoria repleta de produções incríveis em 2020.
Entretanto, os erros do ano passado não se repetem desta vez com Crip Camp. O hit da penúltima edição do Festival de Cinema de Sundance é um pouco mais sutil que as ficções indicadas, um pouco menos incisivo do que alguns companheiros de categoria (Time, por exemplo) e ofusca seus concorrentes igualmente merecedores que não possuem o poder econômico e simbólico da produtora dos Obama. Mas a indicação da vez é merecida e o favoritismo não é apenas justificável como também bem-vindo no Oscar 2021, considerando todo o seu significado no reconhecimento que traz aos profissionais com deficiência, contemplados no nome de James LeBrecht, e à história de inquestionável importância.
Isso é o que se sobressai em Crip Camp, aliás. Ao nos colocar diante de uma história onde os que eram vistos como os mais frágeis e fracos da sociedade enfrentaram o mais alto escalão de seu governo com sucesso, o documentário transcende seu nicho – já de formação obrigatória para qualquer cidadão do século XXI -, pauta o anticapacitismo e cria algo muito poderoso sobre a potência do sentir-se digno.
Reflexão que se desdobra e se manifesta em diversos aspectos de Crip Camp. No Cinema, ele sublinha a importância de se representar pessoas iguais às que vemos na vida real, que de minoria, às vezes, não têm nada, e que estão por aí, contando suas histórias com maestria, transformando assim o reconhecimento como algo que precisa apenas de uma oportunidade para acontecer.
No íntimo, ele toca na verdade simples e subestimada que prova que mudar o micro transforma o macro. É fato que as vigências do nosso mundo são muito grandiosas e muito bem instauradas, mas Crip Camp nos lembra através de um exemplo concreto que as coisas começam por algum lugar. Pelas pessoas, mais especificamente, que por sua vez, também precisam ser transformadas numa realidade que apaga sua autonomia em benefício de suas próprias estruturas.
Com essas peças em mãos, tudo se encaixa. O que Crip Camp constrói é exatamente uma demonstração da transformação que pode surgir de um sentimento ‘simples’ e individual, que acaba por ser poderoso e coletivo. Através do sentir-se capaz e digno de sua existência, digno de sua voz, digno de sua história, e, neste caso em especial, digno de sua arte e de seu cinema, o documentário chega na motivação de tudo o que fazemos na coletividade: lutar pela vida e para que todos tenham direito de vivê-la.