Gabriel Gatti
O corvo é uma ave comumente apresentada como algo negativo. Na Espanha, por exemplo, a frase “cría cuervos y te sacarán los ojos”, utilizada para designar ingratidão, é muito conhecida. Nesse raciocínio, o diretor Carlos Saura faz alusão ao dito popular em Cría Cuervos, que conta a história de três irmãs criadas pela tia após o falecimento dos pais. O longa, de 1976, foi lançado no período da redemocratização espanhola, após 36 anos sob domínio da Ditadura Franquista. Esse contexto histórico serviu de inspiração para Saura na produção do filme.
O longa, que se constrói de forma não-linear, narra a vida de Irene (Conchita Pérez), Ana (Ana Torrent) e Maite (Mayte Sanchez), que passam a ser criadas pela tia Paulina (Mónica Randall) após o falecimento do pai (Héctor Alterio). A trama se alterna entre o presente com flashbacks de quando a mãe (Geraldine Chaplin) ainda estava viva e depoimentos de Ana (Geraldine Chaplin) já adulta refletindo sobre sua infância triste.
O ambiente familiar de Cría Cuervos também era habitado por outras duas pessoas. A avó (Josefina Diaz), é uma idosa com a saúde debilitada e muda, que passa seus dias contemplando com nostalgia suas fotos, de um passado feliz e próspero. A outra moradora é Rosa (Florinda Chico), empregada da casa, à quem Ana recorre para sanar suas dúvidas sobre a vida de sua mãe.
Nas cenas de flashback, é possível perceber a angústia que a mãe vivia dentro do matrimônio. O pai, por sua vez, é um militar que trai sua esposa até mesmo dentro de casa. O falecimento prematuro da mãe, com quem Ana tinha uma relação estreita, fez com que a criança passasse a desenvolver uma fascinação pela morte. Tudo se complica no momento em que as três irmãs passam para a tutela da tia Paulina, por quem a filha do meio possui grande desconfiança e ingratidão. As ordens da nova tutora transformam o ambiente familiar em uma convivência intragável, pela qual Ana relembra na vida adulta como a fase mais triste de sua vida.
A trama de Cría Cuervos se mostra ainda mais complexa no momento em que a narrativa se divide em duas interpretações da obra. A primeira e mais óbvia é a psicológica. O filme se desenvolve com uma história que analisa os efeitos psicológicos da morte na vida de uma criança. A mãe sofre com os rumos do seu casamento, se mostrando sentimental e triste. O pai, por sua vez, é insensível, grosseiro e se importa apenas consigo mesmo. O desenrolar mostra a tentativa de adaptação das irmãs à nova realidade, focando no lado emocional e desmistificando a infância como a fase mais feliz da vida.
No entanto, ao considerar os aspectos políticos e históricos, o longa apresenta sua segunda narrativa, mais profunda e complexa. Desse modo, todos os personagens seriam alegorias representando grupos da história espanhola no crepúsculo da Ditadura Franquista. Seguindo esse raciocínio, Ana seria a própria Espanha, que olha para o seu passado triste em que foi submetida ao governo de Francisco Franco. Agora adulta, ela compreende sua trajetória e pode seguir sua vida, porém as cicatrizes de seu passado serão permanentes. A mãe, por sua vez, representa o povo espanhol, o pai, o governo ditatorial, e a tia, a elite interesseira que ameniza os erros cometidos pelo gestor tirano. A avó emudecida é a população madura, que lembra do passado rico e silencia com a opressão do presente.
Para desenvolver essa narrativa rica com interpretações dualistas, Saura utiliza diversos recursos audiovisuais. Nos monólogos, em que Ana já adulta discorre sobre seu passado, ocorre a quebra da quarta parede. Além disso, os flashbacks presentes em toda a narrativa permitem ao telespectador um vislumbre das memórias da criança, demonstrando que alguns fatos de seu passado estão falhos na sua mente. Esses efeitos de montagem não-linear, realizados brilhantemente por Pablo del Amo, que embaralham a percepção, favorecem a dramaticidade da trama.
Entre essas idas e voltas no tempo, o que chama atenção é a trilha sonora do filme. Em diversos momentos da vida de Ana, a canção Porque te vas, de José Luis Perales interpretada por Jeanette, é repetida incansavelmente. A melodia chiclete servia como um refúgio para a triste infância da criança, que ouvia a música enquanto brincava com suas irmãs.
Um longa bem elaborado assim, só poderia ser assinado por um diretor experiente, assim como Carlos Saura. O cineasta acumulou admiradores ao longo de sua carreira, como Stanley Kubrick, grande apreciador dos filmes Peppermint Frappé e Bodas de Sangue. Além disso, como veterano na indústria do Cinema, Saura ganhou diversos prêmios, como o Urso de Ouro e o Prémio Goya de Melhor Realizador, mas Cría Cuervos foi o grande feito em sua carreira. O filme foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, ao London Film Festival e ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, dentre outros.
Além da direção exitosa, Cría Cuervos é formado por um grande elenco. A interpretação de Ana Torrent guia os telespectadores pela mente conturbada da protagonista Ana enquanto criança. A atriz já havia brilhado no longa O Espírito da Colmeia, que conta a história de duas irmãs que, após assistirem ao filme Frankenstein, ficam obcecadas pelo monstro. Outro destaque de atuação vai para Geraldine Chaplin, filha do renomado Charlie Chaplin, que interpretou Ana adulta e a mãe. Sua interpretação reflete a angústia das personagens, principalmente no caso da filha, que depois de crescida relembra sua infância melancólica.
Toda essa construção permitiu com que Saura, através de uma narrativa pouco convencional, construísse uma metáfora da Ditadura Franquista como uma infância triste. A temática do governo tirano também foi abordada pelo diretor em Ana e os Lobos e Mamãe faz Cem Anos, que, juntos com Cría Cuervos, formam uma trilogia sobre as relações familiares ceifadas pelo autoritarismo de Francisco Franco. Entre analogias e simbolismos, Carlos Saura construiu um filme emblemático e único com uma história contada sob o ponto de vista de uma criança.
Ótima análise do filme, mas gostaria de dar meu depoimento pessoal. Este é um dos filmes mais marcantes e profundos para mim, não por envolvimento com a Espanha ou pela ditadura, mas pela profundidade psicológica de Ana, da tristeza que ela passa no olhar, da mãe e da avó como as personagens femininas são sofridas e as masculinas são duras e pesadas. Já vi este filme no cinema umas 3 ou 4 vezes e em todas elas o choro é inevitável. Um dos filmes mais bonitos que já vi na vida.
excelente conteúdo traçado para entender (se não se sabe da obra de Saura) o filme.
Sem dúvida, um excelente filme e nostálgico também, por ser representante de uma época próspera na qual grandes obras cinematográficas enchiam os cinemas pelos fãs a quererem ver o último feito de seu diretor ou diretores favoritos. Belíssima, profunda e obrigatória análise de Gabriel Gatti pois é esclarecedora para os espectadores. Carlos Saura era um mestre do cinema.