Guilherme Moraes
Ainda que o Cinema de blockbusters não esteja tão aberto a olhar para o audiovisual e sua história como matéria prima, isso é algo essencial na construção de um filme. George Lucas idealizou Star Wars (1977) a partir das obras de samurai japonesas do meio do século XX; Tim Burton se inspirou no expressionismo alemão para dar vida a Batman (1989). Enquanto isso, na atualidade, as grandes franquias e as superproduções se sentem satisfeitas em apenas utilizar suas referências como um artifício de satisfação pessoal para o público que irá entender o significado, além de que, normalmente, eles se auto-referenciam, não explorando o que há de melhor na arte. Por sorte, Todd Phillips entendeu o quão rico pode ser vasculhar a história da linguagem e dialogar com ideias originais. Dessa forma, há cinco anos, ele escavou a filmografia de Martin Scorsese e construiu sua própria versão do Coringa.
O idealizador vai atrás de alguns dos longas mais intimistas de Scorsese: Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982). Obras que são protagonizadas por personagens problemáticos que surgem da violência, caos, opressão e isolamento das metrópoles. Nesse sentido, o diretor pensa em Gotham como uma Nova Iorque nas décadas de 1970 e 1980, e associa tais protagonistas com o Coringa, pois compreende o palhaço como um fruto desse meio urbano conturbado, assim como Travis Bickle (Taxi Driver) e Rupert Pupkin (O Rei da Comédia).
Se olharmos para as outras representações do personagem – Jack Nicholson com toques de mafioso e o terrorista de Heath Ledger –, vemos que existe um aspecto político por trás, mesmo que não esteja tão bem definido. Apesar de não ser um personagem politizado, existe uma essência crítica e ideológica em sua própria existência, especialmente por ser fruto do lixo de Gotham. A nova versão do vilão explora isso mais a fundo, centrada no ser e como ele se transforma em um símbolo da revolução e anarquia. O grito de violência de Arthur Fleck reverbera por toda cidade, que entende como um ato de rebeldia contra a burguesia local. Ainda que não fosse intencional, a reação popular mostra como qualquer ato de retaliação e sobrevivência é uma ação política e revolucionária na Capital do Crime.
Pode até parecer que o longa vai para um lado heroico do vilão, que se põe frente ao sistema corrupto e desumano, mas isso não poderia estar mais errado. Os assassinatos são frios e, ao mesmo tempo, ferozes, com muita graficidade e sanguinolência, o que lembra bastante alguns filmes de crime de Scorsese, como Cassino (1995) e Os Bons Companheiros (1990). Dessa maneira, o diretor nos lembra que estamos falando sobre o Palhaço do Crime, evitando o discurso moralista de vítima da sociedade e sempre buscando uma área cinzenta.
A DC Comics, como um todo, vem seguindo essa linhagem mais complexa em seus filmes e séries do universo Batman (ainda que Coringa não seja canônico). Os protagonistas têm uma natureza própria, como também são completamente influenciados pelo meio. Olhando para as últimas produções desse universo, é possível ver como o Coringa, o Pinguim e o Batman resolvem tudo na base da brutalidade, e isto está relacionado a barbaridade de Gotham. No entanto, eles se comportam de maneiras distintas, lidam com os seus problemas e com a violência de forma própria, pois existem diferenças gritantes em seus traços de personalidade.
O roteiro de Todd Phillips e Scott Silver opta por inserir Thomas Wayne na história e faz isso de maneira interessante, colocá-lo como uma figura problemática e mantenedora da desordem e do caos, totalmente oposto do que os filmes do morcego costumam fazer. Ademais, ele é parte da loucura de Arthur, sendo um dos maiores responsáveis pela criação do Palhaço Assassino. Todavia, o patriarca da família Wayne também é uma vítima do protagonista, pois é perseguido, assim como sua família. Contudo, se a inserção de Thomas é bem feita, a de Bruce parece apenas uma exigência do estúdio para satisfazer a cultura nerd.
A construção visual da cidade, feita pelo cenografista Mark Friedberg e do fotógrafo Lawrence Sher, são muito inspirados em Taxi Driver e After Hours (1985), com tons acinzentados de dia, que ressaltam a sujeira e a poluição, e a escuridão da noite, com pontos de iluminação muito específicos e cores saturadas e desfocadas. Assim, a metrópole se transforma em um ambiente desolador, que aliena os cidadãos e torna um lugar permissivo para o surgimento de figuras exóticas, como o protagonista.
Essa marginalidade cênica que constitui o tema principal da obra: a violência urbana. É dentro dele que surgem Coringas. Esse em questão não é formado a partir de um evento único que vai mudá-lo para sempre, mas a partir de diversos traumas ao longo da vida, até encontrar, na violência, um modo de liberdade e, na barbárie e loucura, enxergar uma versão de si mesmo que ele não se envergonha, muito pelo contrário, se orgulha.
O longa em si é muito musicado e dançante, o que serve cada vez mais para reforçar a excentricidade do protagonista. A cena que mais chama atenção nesse sentido, é a dança na escada, já vestido como o Palhaço do Crime, pronto para assumir de vez esse lado no programa do Murray. Portanto, é um filme que se passa, em grande parte, na mente de Arthur Fleck. De maneira parecida com O Rei da Comédia, nós não somos meros voyeurs de sua jornada, pois não estamos vendo de uma visão privilegiada, mas sim, dentro de sua cabeça, acompanhando seus delírios de perto.
A cena de dança no banheiro, combinada com a trilha sonora de Hildur Guðnadóttir é fundamental na transição de Arthur Fleck para o Coringa. As notas são melódicas e tristes, evidenciando a transformação. No entanto, ao invés de idealizar o ato, elas transformam em algo triste. A interpretação de Joaquin Phoenix eleva a loucura de seu personagem, que dança de maneira leve e com um olhar vago, como se estivesse nas nuvens, porém, Lawrence Sher faz questão de mostrar onde ele realmente está: em um banheiro sujo de Gotham. No que seria o momento de glória de Arthur, a compositora faz questão de destacar a tragicidade, enquanto o fotógrafo se encarrega de ilustrar que o indivíduo é apenas mais uma criatura excêntrica, criada da podridão.
Em um filme de personagem, é esperado que ele seja dependente da atuação do ator principal e é isso o que acontece. Os trejeitos de Joaquin Phoenix são fundamentais para compreender a transição de Arthur Fleck para o Coringa. Apesar de ser muito inspirado em Rupert Pupkin de O Rei da Comédia, Phoenix opta por uma atuação menos performática e mais expressiva. A loucura e a psicopatia são manifestadas por baixo de uma fisionomia triste e cansada. No entanto, a cada assassinato, a melancolia vai dando espaço para traços que estavam inicialmente escondidos.
Apesar das qualidades, o longa sofreu com o seu legado. Parecido com o que aconteceu com Tropa de Elite (2007), Coringa foi compreendido por muitas pessoas como uma idealização do vilão. Sempre existiu um caráter anarquista e anti-sistêmico no personagem, mas depois da obra de Todd Phillips, os chamados incels o alçaram à condição de herói dos oprimidos. Nesse contexto, o diretor decidiu fazer um segundo filme para explicar o primeiro e desmistificar o personagem central, assim como fez José Padilha com o Capitão Nascimento.
As polêmicas acerca da obra não são atoa, afinal, Coringa é muito inspirado no Cinema de Martin Scorsese, diretor que, até hoje, é reconhecido por sua filmografia controversa. Todavia, a película não é apenas o que os incels enxergam nela, existe muito valor, principalmente por não ter medo de suas discordâncias. A fita consegue se aprofundar na essência de um personagem que era tratado como um vilão caótico, mas que agora, começa a ganhar outras roupagens. As análises acerca do Coringa, vão além da interpretação de Joaquin Phoenix, chegando ao de Heath Ledger e Jack Nicholson. Todd Phillips, não apenas bebe de fontes diferentes do que os filmes de heróis da atualidade, como também escolhe um caminho mais interessante, nos presenteando com um blockbuster preocupado com a sua forma.