Enzo Caramori
É possível que um sentimento de surpresa arrebate um espectador desavisado ao descobrir que Corações Gentis (2022), representante belga na Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é um documentário. Essa surpresa, no entanto, está longe de afastar o gênero do longa-metragem dirigido pela dupla de cineastas Olivia Rochette e Gerard-Jan Claes. Nesse híbrido de sensibilidades ficcionais e documentais, o casal de jovens adultos Billie Meeussen e Lucas Roefmans são retratados à beira de transformações em suas aspirações pessoais, com uma emoção vertiginosa e delicada — um típico frio na barriga adolescente — acerca das expectativas sobre o futuro e suas incertezas.
Filmado na cidade de Bruxelas, Kind Hearts — título original da produção europeia — se inicia com uma câmera que passeia pelas pessoas em uma montanha russa de um parque de diversões. Em um olhar inicial, é como se todos ali tivessem a possibilidade de serem retratados, e que a própria prática cinematográfica participasse do jogo da sorte que é a vida. Até que o aparelho, imperceptível e engrandecedor da máscara ficcional do documentário, se fixa no casal que, logo em outra cena, se depara com questões típicas de romances em formação. A iminência do amadurecimento é uma faca de dois gumes para os dois: ao mesmo tempo que são receosos acerca do que pode mudar, levam em conta abrir mão do que possa se tornar corriqueiro — como seu namoro —, em prol de novas emoções capazes de florescer.
Para além da representação documental, Billie e Lucas são também intérpretes de si mesmos, uma vez que reencenam momentos próprios de sua intimidade. Nisso, o ‘docudrama’ desvia de uma tendência de voyeurismo da relação para uma perspectiva honesta que se volta à concretude desse namoro; tanto que o que movimenta o encadeamento das cenas são os sinceros encontros desses pré-adultos com seus amigos e familiares. O que acaba por se montar, nesse terreno ambíguo entre ser e encenar, é a noção do afeto e da narrativa enquanto uma construção mútua; em que, no momento em que não há cuidado e vontade, não há amor. Assim como não há filme.
Essa postura contemplativa compõe um virtuoso desenvolvimento em que as reflexões de cada personagem dão lugar a um retrato fiel dos fatos oriundos e sublimes do primeiro amor. É como se Lucas, compondo suas batidas descritas como emotional summer tunes, e Billie, com suas pretensões dentro da universidade, se revelassem muito mais pelos laços que nutrem uns com os outros do que por reflexões de si mesmos perante as lentes de Rochette e Claes. De certa maneira, esse tom quase que pessoal demais de Kind Hearts retira dos acontecimentos cotidianos uma beleza singela que remonta à destreza dos diálogos dos verões de Eric Rohmer e dos encontros em cafés do Cinema de Hong Sang-Soo. Contudo, a ternura aqui está na realidade dessa paixão, em não conseguir colocar em palavras exatas o que se sente e o que se quer. Assim, quem assiste se insere nessa postura de mera testemunha do sentimento.
Em um dos momentos de mais drástico contato entre realidade e ficção, o casal e alguns amigos assistem a um filme em que namorados tiram suas roupas para dar um mergulho. São emblemáticos seus olhares: conseguem propor uma intimidade e uma sensualidade tão sutil que nem faz necessidade de ser abarcada novamente na narrativa. No entanto, acima de tudo, a cena é premonitória do que essencialmente enfrentam nessa trajetória que, por puro acaso, é filmada e colocada dentro do Cinema. Em uma conversa sensível com seu próprio tempo — com direito a mensagens de texto, videochamadas e redes sociais — Corações Gentis sabe trazer os gestos luminosos da afetividade em um documentário que desloca a temática da evolução, do amor e da efervescência da paixão para o mergulho nas águas frias, porém cheias de descobertas, da vida adulta.