Enzo Caramori
“Nenhuma de nós de fato com uma existência separada. Só traços sobrepostos, confusos, não claros. Como se estivéssemos, todas nós, num palimpsesto.”
Em uma sala, num outro universo que não é, naquele momento, o Rio de Janeiro que estardalhaça do lado de fora, ela está furiosa. Em silêncio, mas nunca quieta. Cautelosamente desajeitada. Uísque caubói, também raivoso, em um copo plástico. Escuta um homem, que nem conhece direito, narrar seus encontros com putas. Mulheres sem nomes, pois são tantas que, no fim, se juntam até se tornarem um único ser com várias cabeças e braços. Rasura. Na verdade, são as estórias que se juntam incessantemente até formarem, gota a gota, gigantes estruturas, como aquelas pedras, em cavernas. Gota a gota. Rígidas. Estalagmites. Que prendem, nos espaços vazios e ocos, o que realmente se quer dizer. E não foi dito.
E é isso – o que não foi dito – que mais pulsa na escrita visceral de Elvira Vigna no brutal Como se estivéssemos em palimpsesto de putas (2016), um de seus últimos livros publicados em vida. Em uma crueza avassaladora, que partilha de um humor blasé e de uma catártica raiva feminina, a autora não traz suas discussões necessariamente na superfície de seu enredo e no desenrolar de suas personagens, mas sim em uma psicologia que está atrás dos eventos narrativos – localizada no que realmente move os acontecimentos – criando uma dualidade acerca do que se diz mas, não necessariamente, é o que quer ser dito. Nessa narrativa, a única verdade está naquilo que é engolido pela língua e reside no escuro. Na ausência. No negativo.
Tradutora, artista plástica, escritora e jornalista, Elvira Vigna prova-se, em um rápido olhar biográfico, uma transeunte entre as mais diversas maneiras de construção da expressão. Formada em Literatura pela Universidade de Nancy, na França, e mestre em Teoria da Significação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a carioca é vencedora, por sua Literatura infantojuvenil, do Prêmio Jabuti e, por seus romances, do Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, e do prêmio Oceanos. Em sua releitura dos contos de Franz Kafka, ilustrada por seus próprios desenhos e destinada ao público jovem, teve publicado postumamente Kafkianas (2018), que levou o prêmio da Biblioteca Nacional, em 2019.
“Eu não penso em impactos. Eu faço uma linha.”
Em sua prosa de fôlego, a autora abandona o romance convencional com um fluxo de escrita que, nesse livro, beira o que seria uma epopeia com ecos beckettianos, negando uma temporalidade única de eventos. Com uma estrutura anárquica, em que os parágrafos são desmembrados em uma leitura crua e cheia de contrastes, o leitor vai se deparar, no primeiro momento, com algo que parece mais um amontoado de mantras, com frases desprovidas de pleno sentido e que flutuam nos blocos do texto. Tudo em seu universo literário deve se misturar para uma compreensão de suas longas significações, que exigem um papel ativo de montagem de quem as lê. Não se esmiúça a Literatura de Vigna, só é possível entendê-la por suas totalidades.
Nesse texto, essa é uma linha que tece inúmeros enfrentamentos que, em suas tramas, vão deixando espaços vazios, os quais justamente fazem a narradora construir essa estória. Nos ares do que se pensa ser o fim dos anos 80 e início da década de 90, ela, sem nome, é uma designer desempregada que se encontra, em um prédio de uma editora beirando a falência, com João, um ex-funcionário da Xerox responsável pela informatização dos sistemas da empresa. Nesses encontros, ele discorre, no que quase são confissões, atravessadas por diversas digressões, sobre seus encontros com prostitutas, enquanto, no silêncio, o qual sua ouvinte mais se fixa, lida com a separação de sua mulher, Lola. No entanto, o que move esse homem a contar essas histórias é um mistério.
Talvez, em primeiro lugar, o reconhecimento, na aparência da narradora, de uma falta de feminilidade que seria cúmplice de sua masculinidade exibicionista e de seu orgulho em contornar o que, no sexo com prostitutas, seria uma simples relação de trabalho, algo significativo. Mas, na monotonia desses falatórios, a narradora, entediada, dá largada a um jogo de preencher as lacunas dessas histórias com as mais mirabolantes teorias que, nunca realmente expostas para João, são uma maneira silenciosa, compartilhada apenas com o leitor, de contestação e de, essencialmente, tirar o sarro. Nessa ironia, tudo que ela pretende é desmobilizá-lo enquanto sujeito que controla a narrativa desses encontros e desses mundos.
Lola, Mariana, Lurien. As outras personagens que a designer posiciona em seu entendimento logo são tiradas de uma planicidade para serem preenchidas de humanidade. Desde a desorganização da figura submissa de Lola até quando presencia o desmontar íntimo e brutal de Mariana, sua colega de quarto e trabalhadora do sexo, ela acessa toda a subjetividade negada pelo homem que tanto escuta. No exercício dessa história, no ressoar de Marguerite Duras, Sofia Coppola, e PJ Harvey, se desafia até mesmo a Literatura, na qual as prostitutas sempre ocuparam um imaginário exoticizado e atravessado por olhares masculinos acerca de suas trajetórias.
Esse livro conta, na montagem de seu infindável palimpsesto, trajetórias de personagens sem rumo, distantes de suas casas, descendo e subindo ruas augustas. Homens cheios de si que, em suas idas aos bares e baladas, querem o escuro dos asfaltos e recebem as lufadas das luzes coloridas da cidade. Nas mãos em cinturas de mulheres que limitam seus movimentos, por segurança, encontram o poder de serem si mesmos, mesmo imaginando, naquele momento, serem outros.
Envoltos nos braços das trabalhadoras do sexo, João e seus amigos, mesmo que tentem esconder, estão desesperados. Nas trepadas, com seus vergonhosos silêncios, falam muito mais do que nos relatos egocêntricos que tanto proclamam. No universo de Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, que também é o mesmo que existe fora das duzentas e poucas páginas do livro, figuras como João querem transgressões. Anseiam pela chance de, em uma noite, conseguir ocupar outro mundo que não seja a pacata vida cotidiana que eles mesmos impõem, em seus falatórios sobre a tradição, à moral e, claro, os bons costumes.
Toda essa caça pelo profano, pelo escuro, pela sarjeta, pelo seio que não é o de sua mãe e nem o de sua mulher, mas sim do corpo que carrega opressões de toda a História, é, no fim, uma busca pelo divino. Como dito em alto e bom tom, pela poeta Hilda Hilst, ‘‘a natureza do obsceno é a vontade de converter’’. Nas voltas dessas empreitadas, esses homens querem seus espaços de segurança e moralidade, numa nostalgia da santidade suscitada por seus encontros. Tanto que, no fim, “há algo de Jesus Cristo em toda prostituta”, como colocado pela escritora e ativista travesti Amara Moira.
Para a narradora é claro: esses homens não conhecem Courbet. Não sabem as origens desses mundos que tanto pensam dominar. Pois, em Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, quem monta o mundo é o afago de uma puta. É a manutenção do lar por uma esposa. É a escuta rebelde, cheia de atrito, de uma jovem em um escritório quase abandonado em um prédio na Rua Marquês de Olinda, no Botafogo. Tudo que o patriarcado assume como seus feitos só existe pois essas mulheres, que, nessa discursividade masculina, são todas as mesmas, estão submetidas a uma compulsória escuta. Mas, em um ponto dessa narrativa, construído em um gigante crescendo, um som surdo toma os ouvidos. E as mulheres gritam. É onde a história termina. Mas não acaba.