Jamily Rigonatto
Livremente inspirada no livro-reportagem Holocausto Brasileiro de Daniela Arbex, Colônia é a nova aposta do Canal Brasil. A série produzida e dirigida por André Ristum é um retrato sensível sobre o hospício em Barbacena, Minas Gerais, que vitimou mais de 60 mil pessoas no último século. Dividida em 10 episódios, a produção explora personagens ficcionais que reconstroem o horror vivido pelos internos do maior manicômio do país.
Um vagão de carga escuro e sem ventilação leva os “doidos” para um destino cruel. Jogados no assoalho, alguns vomitam, urinam, gritam ou choram – ninguém entra ali e volta a ser como era antes. O frame remete à forma como os judeus eram encaminhados aos campos de concentração, e o aspecto degradante e impiedoso animaliza cada figura presente na cena.
A trama nos convida a enxergar pelos olhos de Elisa (Fernanda Marques), uma jovem que foi colocada naquele vagão a mando do próprio pai como castigo por ter engravidado do namorado e recusado se casar com um homem 40 anos mais velho. Desorientada, ela pensa ter sido alvo de um engano, já que seu diagnóstico de esquizofrenia era falso, mas logo percebe que ninguém ia para o Colônia por engano.
Na verdade, os internos eram escolhidos a dedo. O prédio descuidado era um depósito de internações injustificadas, a maioria não tinha nenhum problema psiquiátrico, apenas era mais cômodo para os conservadores da sociedade taxá-los de doidos e mantê-los longe de vista. Gilberto (Arlindo Lopes) foi mandado para o hospício por ser gay; Raimundo (Bukassa Kabengele), um alcoólatra; Valeska (Andréia Horta), uma prostituta apaixonada pelo prefeito de Barbacena, e Wanda (Rejane Faria) tinha uma história muito parecida com a de Elisa.
Apesar de não serem protagonistas, os arcos dos personagens são super bem desenvolvidos, pois os pacientes se tornam a ponte de apoio um do outro e impedem que a loucura de viver naquele lugar os consuma completamente. Em certos momentos, as conversas e sorrisos soltos que eles compartilham amenizam o clima acinzentado.
A interpretação de Rejane Faria constrói a representação mais marcante da série. Wanda já estava aprisionada no Colônia há quase 30 anos, internada pelo patrão por estar grávida e com seu filho arrancado de seus braços dentro daquele edifício frio, ainda sim seu olhar é capaz de transmitir uma serenidade reconfortante. A personagem ajuda Elisa a não tomar decisões precipitadas e é o ponto de paz da protagonista ao longo da trama. As duas criam um laço praticamente maternal que torna impossível não gostar de como as atuações se complementam.
Dentro do Colônia, a rotina fazia questão de tirar qualquer traço de humanidade de quem sobrevivia lá. Os internos passavam fome, frio, eram torturados, dopados e até levados para sessões de eletrochoque que, muitas vezes, deixavam sequelas permanentes. Os funcionários do hospício não ouviam opiniões e a direção não se preocupava com quantos iriam morrer, afinal, nenhum deles tinha alguém que se importasse e era fácil se livrar dos corpos como objetos de pesquisa em Universidades.
Além das críticas visíveis aos comportamentos machistas e racistas da época, Colônia não deixa de incluir o período da ditadura nesses desabafos. Como a produção se ambienta na década de 70, parte dos rejeitados levados para o hospício eram opositores do governo autoritário da época. Um trato entre os militares e a coordenação do hospital permitia que alguns protestantes recebessem um destino diferente da morte e fossem levados para o hospital como punição.
A narrativa também nos entrega reflexões sobre a ética médica com o confronto interno do médico da instituição, que se sente encurralado pela frustração de tantos anos de contribuição com o sistema. E com a enfermeira Laura, interpretada pela atriz Naruna Costa, que ainda vive com a esperança de fazer do Colônia um hospital que cuidasse dos pacientes com seriedade – esse desejo de mudança faz com que ela colabore com Elisa e Wanda ao longo dos episódios.
A fotografia é um dos pontos que se destacam, as cenas foram produzidas em preto e branco e isso carrega toda uma genialidade, já que o peso daquelas paredes não poderia ser representado com cores. A trilha sonora e a locação escolhida como cenário também somam os tons sombrios e dramáticos de que a trama precisa.
Títulos nacionais, como Os Últimos Dias de Gilda, Manhãs de Setembro e Onde Está Meu Coração, têm chamado atenção e trazido a esperança de mais reconhecimento para o audiovisual brasileiro. Colônia não fica de fora dessa lista e facilmente poderia ser classificada como um dos melhores lançamentos de 2021. Tudo é ambientado de forma coerente, com trabalhos de atuação impecáveis que emocionam pelos detalhes. Colônia é mais que uma produção audiovisual, é um alerta para a questão da valorização da saúde mental e para o cuidado com os direitos humanos no Brasil. Seu script sensível e delicado remonta com louvor o marco histórico de uma tragédia brasileira muitas vezes esquecida.